terça-feira, 23 de setembro de 2014

Algumas Crônicas de Fernando BONASSI


 



Fernando Bonassi

 


crônicas na Folha de São Paulo
 

2002 - 2006




12 / POBRES PAULISTAS


Homens atarantados pelas ruas de São Paulo. Homens possessos respondendo processos. Homens honestos em casos funestos. Homens indigestos. Homens armados fazendo homens de alvo. Homens levados. Homens mutilados chorando no asfalto. Homens esmagados. Homens socorridos. Homens resignados como cachorros abandonados. Homens afamados. Homens afobados. Homens desconfiados recebendo recados. Homens sérios cultuando cemitérios. Homens felizes com poeira nos narizes. Homens chapados gargalhando de fracassos. Homens atléticos de cérebros esqueléticos. Homens religiosos e seus deuses preguiçosos. Homens desenganados e revólveres emprestados. Homens incomodados sem o útero inflamado. Homens angelicais e suas cólicas renais. Homens ferozes em carros velozes. Homens siderados. Homens excitados. Homens seduzidos. Homens ricos e guarda-costas aflitos. Homens de couraça. Homens sob ameaça de uma mosca que passa. Homens escravizados amarrados por contratos. Homens educados por livros copiados. Homens entendidos procurando por maridos. Homens assumidos. Homens revoltados agarrados em alambrados. Homens em turma. Homens em turba. Homens amargurados adoçados por retratos. Homens desmemoriados. Homens desaparecidos. Homens recomendados acompanham certificados. Homens assinalados por chupões avermelhados. Homens marcados. Homens apaixonados. Homens enlouquecidos. Homens traídos por telefones batidos. Homens falados. Homens falidos. Homens asmáticos curvados sobre cigarros. Homens decentes tragados por enchentes. Homens do cacete! Homens descartáveis em embalagens memoráveis. Homens especiais para burradas monumentais. Homens oficiais. Homens profissionais para as coisas normais. Homens de coração. Homens de prontidão. Homens de valor derretendo no calor. Homens diferentes. Homens recorrentes. Homens indigentes. Homens parecidos como pães amanhecidos. Homens baratos como ratos. Homens de brio morrendo de frio. Homens sem camisa vivendo de brisa. Homens fervendo. Homens querendo. Homens de família escapando da vigília. Homens cansados em ônibus desgovernados. Homens apertados. Homens espremidos. Homens contrariados com seus quereres adiados. Homens de fibra com intestinos presos. Homens de palavra por um fio de barba. Homens de visão com a cara no chão. Homens civilizados. Homens vilanizados. Homens com pressa cumprindo promessa. Homens lacônicos em caixas eletrônicos. Homens vitoriosos e troféus charmosos. Homens geniosos de humores horrorosos. Homens blindados. Homens dotados. Homens batidos. Homens condecorados e diplomas amassados. Homens morais e suas causas fatais. Homens protocolares com ideias escolares. Homens desperdiçados. Homens acostumados. Homens escandalizados. Homens visados e cheques sem fundo. Homens esquivos e projetos escusos. Homens sem juízo causando prejuízo. Homens gordos como presuntos, espertos como defuntos. Homens encoxando valises. Homens criando varizes. Homens danados por danos causados. Homens encalacrados por lacres violados. Homens safados. Homens maduros. Homens seguros. Homens comprometidos com carnês vencidos. Homens vidrados de ovos virados. Homens da elite acometidos de artrite. Homens do poder. Homens de f... Homens coitados com rabos inchados. Homens atrapalhados por raciocínios embotados. Homens doentes arreganhando os dentes. Homens sensíveis com problemas visíveis. Homens banguelas batendo panelas. Homens envergonhados em banheiros imaculados. Homens preparados. Homens treinados salivando ao chamado. Homens desencontrados por mapas inalterados. Homens de achados. Homens parados. Homens perdidos. Homens empreendedores despencando de elevadores. Homens de posição tiradas da televisão. Homens atuantes com memória de elefante. Homens fardados. Homens formados. Homens fornidos. Homens esquecidos. Homens esquisitos. Homens de programa. Homens de pijama. Homens bomba. Homens burros. Homens sanduíche. Homens morcego. Homens comuns. Homens rã. Homens engolindo sapos. Homens estudados e suas teses de mestrado. Homens alterados no trânsito engarrafado. Homens atropelados por carrinhos de supermercados. Homens de bem para o ano que vem. Homens imolados. Homens amolados. Homens atolados. Homens cheios de sonho, cheios de sono. Homens querendo paz. Homens querendo mais. Homens demais. Homens provados à prova de enfado. Homens comprados. Homens vincados. Homens vendidos. Homens carentes feito sementes. Homens valentes feito valetes. Homens prostrados feito estrados. Bandeirantes, imigrantes, retirantes, arrivistas, homens de passagem, homens paulistas. Homens vergados pelo peso do passado. Homens do futuro por trás dos muros. Homens com filhos ajoelhados no milho. Homens aos milhões, aos porrilhões. Homens da cidade. Homens de verdade. Homens como nós. Homens solitários varejando por salários. Homens atarantados pelas ruas de São Paulo.




fonte: A BOCA NO MUNDO – 100 crônicas de Fernando Bonassi
 

São Paulo / Novo Século / 2007



 







13/ QUANDO ESTIVER CONFORTÁVEL

 
Cuidado. Acontece quando você está confortável. Quando você tem a sensação do dever cumprido e a cidade esquenta do outro lado da janela. Justamente quando você baixa a guarda e tenta "esfriar a cabeça". Quando você encontra um lugar. Nada demais. Uma sala simples com ar-condicionado bem temperado. Você se aquieta, tem um drinque nas mãos. É um bom lugar pra empunhar o seu copo. A cidade derretendo do outro lado e você com umas belas paredes pra separar a confusão toda. E tapetes macios pra pisar e cortinas grossas pra afastar a luz inconveniente. Você flutua. Você puxa as cortinas da sala e dá um bom gole no seu drinque. Um drinque gelado. A meia-luz também suaviza o calor. Sua cabeça vai parando de latejar.

É quando você está assim, aproveitando. Quando relaxa. Há plantas em torno e as plantas ajudam. As plantas ajeitadas em vasos. Há pequenos vasos sobre as mesas e grandes vasos no chão. Tudo muito refrescante. O ar-condicionado, as plantas, os móveis... os móveis são muito limpos. O drinque, tudo bem, está gelado. Você repara nas paredes. As paredes são lisas e aveludadas como uma pele. Você fica admirando aquela película. Além dessa textura especial, as paredes têm bons quadros. Retratam coisas antigas, permanentes, tranquilizadoras. Você põe os olhos nelas e... "se desprende", por assim dizer. A cidade, você sabe, rachando do outro lado. Os bons quadros têm molduras muito boas. Um pouco pesadas talvez, mas os quadros e as molduras combinam. Não incomodam as vistas.

Você afrouxa a gravata. Abre uns botões. Na poltrona há lugares pros cotovelos, pros pés e até pra encaixar o pescoço. Você baixa a guarda. A coisa toda massageando sua estrutura óssea; a respiração começando a adquirir aquela cadência própria do repouso. As pálpebras demoram cada vez mais pra abrir quando você pisca. Seus músculos dissolvem-se preguiçosamente.

O seu drinque bem na sua mão e a cidade inteira se assando lá fora. Dá pra sentir. Você sabe como é. É quando você está conseguindo "pousar o cargueiro"; quando "a batalha parece ter dado uma trégua"... é bem aí...

Você não presta atenção logo que começa, mas percebe. Há algo vibrando embaixo de você, dentro de você... não. Está fora das paredes. Você pensa que é um terremoto. Depois você pensa que essa é uma cidade afortunada por não termos catástrofes tão naturais em outros povos; embora ela fique fritando do outro lado das paredes... Você demora a tomar ciência. Você hesita, mas tem que se haver com o que acontece.

E o que acontece é isso mesmo: são as paredes, meu amigo. Elas começaram a se mover. Na sua direção. Lentamente. Você pode ver com a maior clareza; não ajuda, mas pode. É isso: as paredes começaram a se fechar umas por cima das outras e você foi colhido no meio do negócio.

Primeiro você observa com curiosidade. Fica fazendo "joguinhos mentais", imaginando quando é que vão parar com aquilo. Quando alguém vai abrir a porta e dizer: "brincadeirinha!". Só que demora. Amigo... como demora!

Você finalmente ergue sua bunda da poltrona. Vai até a porta. Tenta abri-la. Claro que ela não cede. A coisa não para. Você é que para. Tenta pôr as ideias no lugar. Não dá tempo. Dá um gole no drinque. Ele já não tem o mesmo gosto. Você vira as costas pra cidade fervendo do outro lado das paredes. As paredes encostam nas plantas. As mesas começam a ser empurradas. Os vasos das mesas rodam e acabam no chão. Quebram. Os vasos maiores vão sendo jogados pro centro, pro mesmo lugar onde você está.

Enquanto você pensa numa maneira brilhante de dividir o espaço cada vez mais exíguo com meia dúzia de samambaias dos infernos, os quadros despregam das paredes. Todas aquelas paisagens caem e pulam das molduras e amarrotam. As molduras estilhaçam. São de gesso. O pó se espalha. Você se protege. Sufoca. As paredes nem aí, conduzindo aquele movimento teimoso, te reduzindo a cada vez menos.

Você então sussurra. Ainda tem vergonha. Chama um nome, outro. Apela aos conhecidos. A quem interessar possa. A alguém que possa ajudar... Você pede. Um pouco mais alto agora, na esperança de que alguém tenha se aproximado. Você junta as mãos no rosto e fala e pede e, por fim, grita. Anda de um lado pro outro gritando. Chega a chorar. Um pouco. Você termina seu drinque de uma vez só. Está quente, choco. Você cospe. Não sabe onde colocar o copo.
As mesas e a poltrona continuam se movendo. Se empurrando. Te empurrando. Você salta sobre a poltrona. Você chega perto das paredes, dos seus vãos, imaginando que é ali, no filete escuro em que as paredes rolam umas sobre as outras, que vai poder avisar quem quer que seja sobre o que está se passando. Você se esfrega nos vãos das paredes. Você encolhe essa barriga, antevendo o pior. É ridículo. As paredes da mesma maneira, reduzindo o seu conforto. Você baixou a guarda, lembre-se. Bem quando você estava confortável. Quando o mecanismo estava muito perto de "parar mesmo", se é que você me entende. As paredes vão derrubando e trincando e moendo e esmagando tudo o que está no caminho. Nada resiste à sua passagem. Nada mesmo. E lentamente. Você pode ver tudo. A poltrona esmigalhada, o cinzeiro de metal transformado numa fita retorcida, a mesa estilhaçada, seus pés de metal rangendo... no fim, as lâmpadas faíscam e explodem. Há uma luz intensa e depois tudo fica escuro. Desesperado você tateia, coloca a mão sobre a parede, faz força... muita força... toda a força que tem... obviamente as paredes não param por isso... está sentindo esse cheiro? Cuidado...



fonte: A BOCA NO MUNDO – 100 crônicas de Fernando Bonassi
 

São Paulo / Novo Século / 2007



 







20 / REFORMAS BRASIL LTDA.


Reunidos no fragor da indiferença, visando evitar prejuízos ao desinteresse nacional e inclinados a fazer nada de mal, assim como de bom, a Turma do Deixa Disso preparou este desarrazoado, de forma a desencaminhar algumas sugestões de reformas e consertos em geral, contribuindo para que tudo fique melhor do jeito que está mesmo:

1.O executivo continuará se defendendo às canetadas e protegido do controle organizado pela porta do cofre. O cofre será blindado, mas não se admitirão segredos entre autoridades incompetentes.
2.O judiciário continuará, em última instância, tendo suprema pena de si mesmo.
3.O legislativo continuará votando seus aumentos de salários. Quanto ao resto, o mínimo é o necessário.
4.Os policiais continuarão atirando primeiro. Em caso de erro,farão perguntas.
5.Os bandidos continuarão atirando a esmo. Em caso de acerto, farão churrascos e soltarão fogos.
6.As balas perdidas continuarão sendo remetidas aos donos de origem, de um lado e de outro.
7.O Ministério da Saúde poderá advertir: a cocaína chutada será sobretaxada.
8.Os ministros fritos e ex-presidentes desempregados continuarão ganhando embaixadas chiques e verbas de representação em moeda forte. A representação será proporcional ao nível dos coquetéis.
9.A iniciativa privada continuará cooptando influência das coisas públicas (é favor não confundir a coisa pública com 'coisa pública').
10.O que for arremessado no ventilador não poderá cheirar mal, nem manchar reputações ilibadas.
11.Os militares belicosos poderão ser atingidos, mas não devem ficar nervosos.
12.Os confessos terão suas palavras usadas contra si. Recomenda-se o silêncio como a melhor maneira de não se meter no que quer que seja.
13.As igrejas, por via das sua dúvidas, continuarão dando graças a Deus e pedindo dízimos, que ninguém é de ferro e o santo é de barro.
14.Os assalariados, por via das dívidas, continuarão afundando em crediário movediço.
15.O crédito continuará restrito àqueles que puderem pagar à vista pelo olho da cara.
16.Os leões esfomeados continuarão arranhando os contribuintes vacinados.
17.Os que comprarem um atestado de supercansados continuarão recebendo superaposentadorias.
18.Os que se fizerem de mortos continuarão recebendo pensão por falecimento. Os que ficarem inválidos serão aleijados definitivamente dos processos.
19.O sistema bancário continuará fazendo sigilo e também uma grana 9depois outra, então mais outra e assim por diante)
20.A televisão ignorante continuará se encarregando da cadeia nacional, na qual as feras podem ser isoladas do convívio social nos apertamentos dos conjuntos habitacionais.
21.A cultura de bactérias continuará sendo desenvolvida à custa de renúncia fiscal para combater ideologias alienígenas.
22.As massagistas e os gerentes de marketing poderão ser indiciados por excitar nosso despudor.
23.A renúncia fiscal continuará sendo como um paraíso.
24.Nos paraísos fiscais também serão recebidos férias e décimo terceiro via Sedex Internacional ou exportação subsidiada.
25.A vingança continuará sendo requentada. Os desafios continuarão tendo seu vencimento adiado ate segunda ordem, não cabendo multa por atraso.
26.A ordem continuará sempre a vir antes do progresso. Se necessário será usada a força elétrica com dois fios desencapados no saco dos coitados.
27.Quem não tiver riqueza espiritual continuará andando com a roupa do corpo; na ausência delas, uma mão deverá ser posta na frente e outra, profundamente, lá atrás.
28.Os inativos não poderão coçar as partes baixas, salvo por motivo de doença.
29.Para os casos de doença urgente continuarão existindo planos de saúde de longo prazo.
30.Os velhos que não largarem o osso, de todo mundo, devem morrer de artrite.
31.A juventude miserável sempre preferirá o sangue fresco.
32.Os colarinhos encardidos continuarão sendo pintados de branco a cada gestão no orçamento.
33.Os negros e as mulheres continuarão ganhando menos pra fazer a mesma coisa, o que terá sido mera coincidência, ou costume, sei lá...
34.A carapuça que servir será transformada em carapaça.

    ATENÇÃO: Alertamos para o fato dos esquisitos poderem se misturar aos estranhos, criando grande confusão aos distraídos. Por isso, ao que fizer sentido será oposto um contraditório, de forma a redefinir uma série de ambiguidades inconsistentes. Pelo sim, pelo não, valerá o que for desencontrado, em nome da incoerência.

      A História que julgue essa historinha...


fonte: A BOCA NO MUNDO – 100 crônicas de Fernando Bonassi
 

São Paulo / Novo Século / 2007





sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O poema Gemidos de Arte - de Augusto dos Anjos






O poema Gemidos de Arte na Poética de Augusto dos Anjos


Leonardo de Magalhaens

Fale / UFMG



Poética de Augusto dos Anjos


      A Poética de Augusto dos Anjos (Paraíba, 1884 - Minas Gerais, 1914), professor e poeta, autor do livro único Eu (1912), é reconhecida como uma exploração de temas metafísicos e científicos em forma lírica e pós-simbolista, com rigor métrico e rimas raras, com demonstração de vasta erudição (ainda que 'mal digerida') com o uso de excêntrico vocabulários, onde se destacam os termos científicos e filosóficos, além das palavras proparoxítonas de raro uso.

      A ambiência desta poética encontra-se plena de tons soturnos, brumas góticas, clamor na solidão do eu lírico, o ser singular na vastidão do mundo, a impotência do indivíduo consciente submetido às forças imperiosas e desconhecidas do cosmos, a consciência enquanto incômodo existencial, o deslocamento do visionário na vida prática. As exigências da vida social – medíocre e mesquinha - são um suplício para o ser que se recolhe à solidão onde encontra refúgio para ser autêntico, enquanto ser que sofre. Neste sofrimento o eu lírico destila pensamentos pessimistas e até niilistas.

      As referências à autores e obras, sejam poetas, filósofos ou personalidades, também são destaque na poética de Augusto dos Anjos, sejam metafísicos, materialistas, platônicos ou pré-socráticos, evolucionistas, figuras bíblicas ou das mitologias grega e romana, toda um anexo com biografias e trechos de obras é necessário para compreender algumas alusões feitas pelo poeta. Outro glossário é necessário para os termos de metafísica, religião, filosofia alemã, naturalismo, evolucionismo, etc, para se absorver os conhecimentos eruditos do poeta.

      Para alguns é fascinante este vocabulário, para o exercício na pesquisa dos campos semânticos – filosofia, religião, ciências – além das consultas ao dicionário de língua portuguesa, em busca de notas de etimologias do nosso idioma (que conservou radicais, sufixos, prefixos, mesmo palavras, dos idiomas latim e grego) tão variado e flexível para expressar conceitos e teorias, sentimentos e desassossegos. Para outros, a maioria, o vocabulário é o elemento que afasta, o que causa estranhamento a ponto de se evitar a leitura mais aprofundada. Assim é quando julgam o poeta um autor pedante, a despejar palavras esdrúxulas numa pretensa poesia filosófica com erudição 'mal digerida'.

      Sobre o vocabulário – e as temáticas obsessivas – de Augusto dos Anjos, escreve Darci Damasceno (em A Literatura no Brasil, Vol. 4, cap. 46, p. 605; org. Afrânio Coutinho, 2004), a ressaltar os aspectos da introspecção e da consciência da finitude,

Assenhorando-se de um vocabulário pertencente às ciências e às técnicas, incorporando a temática do macabro, imbuindo-se de filosofia materialista, Augusto dos Anjos caldeou tudo isso em argamassa de extremado pessimismo e fez do lado sórdido, negativo ou carcomido da vida a fonte de seu canto. A obsessão do próprio eu, a penetração a fundo na própria personalidade foi a constante de toda sua atividade criadora, e a consciência da morte, ou melhor, do aniquilamento absoluto era a soturna voz que lhe perpassava poema a poema.



Gemidos de Arte na poética augustiana


      Em Gemidos de Arte podemos encontrar algumas características que se destacam na obra poética do autor Augusto dos Anjos. É um longo poema, em 3 partes, com estrofes de versos decassílabos (heroicos e sáficos) onde o eu lírico descreve um ambiente, cercado pela Natureza, presente no Engenho Pau D'Arco, na Paraíba, onde o poeta nasceu, onde medita num pesaroso passeio, em meados de maio de 1907, a pensar na infância e na decadência da família, que perde o patriarcas e os latifúndios, onde a falência financeira é seguida pela dispersão familiar e morte dos entes queridos.

O sol agora é de um fulgor compacto,
E eu vou andando, (…)

O sol de cima espiando a flora moça
Arda, fustigue, queime, corte, morda!...
...

Avisto o vulto das sombrias granjas
Perdidas no alto... Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras eu admiro os cachos
E a ampla circunferência das laranjas.

e

Os ventos vagabundos batem, bolem
Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira...
E a alma dos vegetais rebenta inteira
De todos os corpúsculos do pólen.

mais

Pelo acidentadíssimo caminho
Faísca o sol. Nédios, batendo a cauda,
Urram os Dois. O céu lembra uma lauda
Do mais incorruptível pergaminho.


      O poeta segue a abordar os temas da desilusão, da solidão, do deslocamento no mundo, num poema onde a paisagem é uma moldura para a expressão do sofrimento ou da amargura, com a perda do aconchego da infância, dos carinhos da mãe (bem evidente em “Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles / Carinhos, com que guarda meus sapatos, / Por que me deu consciência dos meus atos / Para eu me arrepender de todos eles?!),

Esta desilusão que me acabrunha
E mais traidora do que o foi Pilatos!...
Por causa disto, eu vivo pelos matos,
...
Tenho estremecimentos indecisos
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,


       Em seguida aborda a questão da dualidade corpo X alma, “Mas a carne é que é humana! A alma é divina.”, uma descrição do mundo impuro e decadente, paralelo a uma ânsia de transcendência às esferas superiores – tal um Dante da era cientificista - , num desejo de pregar uma redenção – além da poesia, imagina-se, numa espantosa vontade de sacrifício, “Uma vontade absurda de ser Cristo / Para sacrificar-me pelos homens!”, além do desejo de sair do plano físico , material para uma transcendência em espaços mais sublimes,


Soberano desejo! Soberana
Ambição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa língua alguma
O óleo rançoso da saliva humana!
Uma região sem nódoas e sem lixos,
Subtraída á hediondez de ínfimo casco,
...
Outras constelações e outros espaços


      Para acentuar uma ambiência expressiva – até expressionista? - há uma recorrência de repetições enfáticas, com mudança de classe gramatical, assim temos giro / giram, ou redemoinho / redemoinham, ou raciocínio / raciocinasse, como um resquício da exploração da sonoridade (“a música antes de tudo”, de Paul Verlaine ) do estilo Simbolista. Assim encontramos : “Em giro e em redemoinho em mim caminham / Ríspidas mágoas estranguladoras, / Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras / Brônzeas, também giram e redemoinham.” e “Por sobre todo o meu raciocínio / Para que eu nunca mais raciocinasse?!”


      No poema temos várias referências a personagens bíblicos, seres e deuses da mitologia pagã / grega, além de personalidades históricas e países assim Pilatos, Cristo, Jeová, Nabucodonosor, também o deus pagão Dioniso, e o romano Plínio, o cientista Laplace, o político Jules Favre e Alemanha. Também um certa Avenida das Mappales. Estas referências parecem surgir , às vezes, apenas para manter um padrão de rima, ou apresentar uma rima rara. Algumas vezes é até difícil situar o referencial. Por exemplo, de onde este Parfeno? Quem seria? Qual a relação com Dioniso, deus grego, chamado Baco, na mitologia romana?

      Ainda há no poema uma figura rememorada, um trabalhador braçal, ser humilde, chamado aqui de Toca, já finado, que “carregava canas para o engenho”, o que mostra uma imagem da exploração do trabalho do camponês pela nossa aristocracia rural. Classe esta a qual o poeta pertencia, em sua infância, sendo filho de dono de engenho, no interior da Paraíba, antes de um momento de crises – abolição da escravidão, novas relações de trabalho, transição política da Monarquia para a República (em 1889) – que abalou a família e o poeta, logo depois auto-exilado.
       Mais: a consciência social do poeta evidencia-se quando denuncia “o pedaço já podre de pão duro / que o miserável recebeu na estrada” ou “o dinheiro coberto de azinhavre / que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!” - assim como se mostra no extenso poema Os Doentes, poema que relembra as condições miseráveis do grupos marginalizados – os doentes, os bêbados, as prostitutas, os indígenas, etc - na sociedade brasileira, desigual e excludente desde a colonização. Diante desta sociedade, numa postura crítica, se encontra o poeta, sozinho, 'pelos matos', como um excluído / perseguido.

      Além disso, a marca do exilado está na amargura ao tecer comparação do que foi com o que é, aquele sentimento de perda que torna a saudade tão dolorosa – 'ontem foi melhor que hoje' - “Nos outros tempos e nas outras eras, / Quantas flores! Agora, em vez de flores, / Os musgos, como exóticos pintores, / Pintam caretas verdes nas taperas.” É o sentimento que abate o poeta quando pensa que a infância está perdia, que ele precisa deixar o útero da família e enfrentar um mundo de imperativos e desalentos.

       As meditações do eu lírico sobre a unidade da pluralidade do mundo, o ciclo das transformações, a morte que gera vida, a fatalidade de um Destino que nos oprime, tudo isso gera uma febre que deseja se transborda nos versos, ora prosaicos, ora ásperos, explicitando um desconforto, “com a cabeça em brasas”, em comparação com o ambiente, onde o sol queima na aridez do sertão. Quanto mais calor no plano externo, mais febre na ebulição das ideias de profundidade metafísica – Universo, Fatalidade, Espírito sublime.

      Podemos falar em expressionismo não apenas como uma escola literária que o poeta seguiria, mas como uma forma de se expressar, como um grito – aqui lembramos do famoso quadro “O Grito” do pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944) – como um desabafo do desassossego existencial que o poeta sente diante da própria desolação – em reflexo com a desolação do engenho onde nada é como era antes – e do mundo onde apenas vê e prevê misérias e decepções,

Súbito, arrebentando a horrenda calma,
Grito, e se grito é para que meu grito
Seja a revelação deste Infinito
Que eu trago encarcerado na minh'alma


      No mais, o poema Gemido de Arte é citado em outro poema de Augusto dos Anjos, igualmente extenso e meditativo, escrito na mesma época e local, chamado “Tristezas de um Quarto Minguante”, onde as descrições são de um ambiente noturno no Engenho de Pau D'Arco, “Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare, / Este Engenho Pau d'Arco é muito triste.... / Do observatório em que eu estou situado / A lua magra, quando a noite cresce,”, logo em seu início mostra um tom soturno.


       Há algo de ultra-romantismo, ou decadentismo, não fosse a impressão onírica, de ilusão – assim mais próximo do expressionismo da Europa de pré-Primeira Guerra Mundial – ainda que uma voz consciente saiba que em dia (ou noite) se encontra, a citar datas, aquela da composição que analisamos, Gemidos de Arte, “Vai-me crescendo a aberração do sonho. / Morde-me os nervos o desejo doudo / De dissolver-me, de enterrar-me todo / Naquele semicírculo medonho! // Mas tudo isto é ilusão de minha parte! / Quem sabe se não é porque não saio / Desde que, 6.ª-feira, 3 de maio, / Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!”


        Parece haver mesmo uma relação claro - escuro, dia – noite entre os poemas Gemidos de Arte e Tristezas de um Quarto Minguante, pois no primeiro, o poeta descreve o sol, os laranjais, a infância perdida, enquanto no segundo, no mesmo local, ele descreve o luar, as sombras, os 'sonhos dementes'. Também esta é a leitura apresentada por Zenir Campos Reis (em Literatura Comentada – Augusto dos Anjos, 1982),

Este poema ('Gemidos de Arte') deve ser lido junto com outro, “Tristezas de um Quarto Minguante”: ambos fazem referência ao Engenho Pau d'Arco, onde nasceu e foi criado o poeta. 'Gemidos de Arte' é um poema do Sol, diurno; 'Tristezas de um Quarto Minguante' é noturno, da Lua. Observe as imagens de luz, de vida, num; no outro, as de trevas, de delírio e de morte.

       A poética de Augusto dos Anjos situava-se bem adiante da poesia brasileira de sua época, em diálogo com o cientificismo, com o positivismo, com as novas teorias do evolucionismo, de fins de século XIX, o que explica a dificuldade dos ditos pré-modernistas, muitos tradicionais parnasianos e simbolistas, em aceitarem e compreenderem sua escrita, que apresenta algo de um expressionismo, como notamos nas poéticas do alemão Gottfried Benn (1886-1956) e do austríaco Georg Trakl (1887-1914), contemporâneos cuja poesia Augusto dos Anjos teria se identificado, e lido com mórbido prazer.


2014



Referências


ANJOS, Augusto dos Anjos. Eu e outras poesias. Belo Horizonte: Livraria Garnier, 1998.

Augusto dos Anjos / seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios por Zenir Campos Reis. São Paulo: Abril Educação, 1982. (Literatura Comentada)

Literatura no Brasil, A. Direção Afrânio Coutinho; co-direção Eduardo de Faria Coutinho. 7ª ed. rev. e atual. São Paulo: Global, 2004.






poemas expressionistas de Benn e Trakl
nos sites











LdeM

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

4 crônicas de Clarice Lispector








CLARICE LISPECTOR



1925 – 1977



crônicas / 1967- 1976





Ainda sem resposta


Não sei mais escrever, perdi o jeito. Mas já vi muita coisa no mundo. Uma delas, e não das menos dolorosas, é ter visto bocas se abrirem para dizer ou talvez apenas balbuciar, e simplesmente não conseguirem. Então eu quereria às vezes dizer o que elas não puderam falar. Não sei mais escrever, porém o fato literário tornou-se aos poucos tão desimportante para mim que não saber escrever talvez seja exatamente o que me salvará da literatura.
O que é que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar.


Jornal do Brasil / junho / 1968






Como é que se escreve?

Quando não estou escrevendo, eu simplesmente não sei como se escreve. E se não soasse infantil e falsa a pergunta das mais sinceras, eu escolheria um amigo escritor e lhe perguntaria: como é que se escreve?

Por que, realmente, como é que se escreve? que é que se diz? e como dizer? e como é que se começa? e que é que se faz com o papel em branco nos defrontando tranquilo?

Sei que a resposta, por mais que intrigue, é a única: escrevendo. Sou a pessoa que mais se surpreende de escrever. E ainda não me habituei a que me chamem de escritora. Porque, fora das horas em que escrevo, não sei absolutamente escrever. Será que escrever não é um ofício? Não há aprendizagem, então? O que é? Só me considerarei escritora no dia em que eu disser: sei como se escreve.


Jornal do Brasil / novembro / 1968







A máquina está crescendo

O homem foi programado por Deus para resolver problemas. Mas começou a criá-los em vez de resolvê-los. A máquina foi programada pelo homem para resolver os problemas que ele criou. Mas ela, a máquina, está começando também a criar problemas que desorientam e engolem o homem. A máquina continua crescendo. Está enorme. A ponto de que talvez o homem deixe de ser uma organização humana. E como perfeição de ser criado, só existirá a máquina. Deus criou um problema para si próprio. Ele terminará destruindo a máquina e recomeçando pela ignorância do homem diante da maçã. Ou o homem será um triste antepassado da máquina; melhor o mistério do Paraíso.


Jornal do Brasil / março / 1970






Você é um número


Se você não tomar cuidado vira número até para si mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce classificam-no com um número. Sua identidade no Félix Pacheco é um número. O registro civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Profissionalmente falando você também é. Para ser motorista, tem carteira com número, e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de apartamento - tudo é número.
Se é dos que abrem crediário, para eles você é um número. Se tem propriedade, também. Se é sócio de um clube tem um número. Se é imortal da Academia Brasileira de Letras tem o número da cadeira.
É por isso que vou tomar aulas particulares de Matemática. Preciso saber das coisas. Ou aulas de Física. Não estou brincando: vou mesmo tomar aulas de Matemática, preciso saber alguma coisa sobre cálculo integral.
Se você é comerciante, seu alvará de localização o classifica também.
Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência também é solicitado por um número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de negócio recebe um número. Para tomar um avião, dão-lhe um número. Se possui ações também recebe um, como acionista de uma companhia. E claro que você é um número no recenseamento. Se é católico recebe número de batismo. No registro civil ou religioso você é numerado. Se possui personalidade jurídica tem. E quando a gente morre, no jazigo, tem um número. E a certidão de óbito também.
Nós não somos ninguém? Protesto. Aliás é inútil o protesto. E vai ver meu protesto também é número.
Uma amiga minha contou que no Alto Sertão de Pernambuco uma mulher estava com o filho doente, desidratado, foi ao Posto de Saúde. E recebeu a ficha número 10. Mas dentro do horário previsto pelo médico a criança não pôde ser atendida porque só atenderam até o número 9. A criança morreu por causa de um número. Nós somos culpados.
Se há uma guerra, você é classificado por um número. Numa pulseira com placa metálica, se não me engano. Ou numa corrente de pescoço, metálica.
Nós vamos lutar contra isso. Cada um é um, sem número. O si-mesmo é apenas o si-mesmo.
E Deus não é número.
Vamos ser gente, por favor. Nossa sociedade está nos deixando secos como um número seco, como um osso branco seco exposto ao sol. Meu número íntimo é 9. Só. 8. Só. 7. Só. Sem somá-los nem transformá-los em novecentos e oitenta e sete. Estou me classificando com um número? Não, a intimidade não deixa. Vejam, tentei várias vezes na vida não ter número e não escapei. O que faz com que precisemos de muito carinho, de nome próprio, de genuinidade. Vamos amar que amor não tem número. Ou tem?


Jornal do Brasil / ago / 1971


in: Pequenas Descobertas do Mundo / crônica e conto / 2003




segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Construção poética e Metalinguagem em O Engenheiro - João Cabral








Construção poética e Metalinguagem em O Engenheiro [1945]
de João Cabral de Melo Neto


Leonardo de Magalhaens



Fale/UFMG


     Por muitos críticos incluído na chamada Geração de 45, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto [1920-1999] é sempre lembrado pelo rigor formal e pela metalinguagem, pela presença estilística e pela influência sobre os novos poetas, inclusive os concretistas, da década seguinte. Mais conhecido pelo poema-peça-teatral Morte e Vida Severina, Melo Neto é reverenciado, antes, por aqueles que apreciam o rigor formal, não exatamente um discurso engajado sobre a miséria do Nordeste.

     Melo Neto se destaca na condição do poeta que explica o poema em metapoemas, numa consideração-explicação do ato de escrita. Mas não é um autor diante de um leitor, mas o poeta consigo mesmo. Pois é esperado poeta diante do leitor? que leitor? É possível que o leitor entenda? Não, não é esperado do leitor. É o poeta às voltas com sua tarefa, de reduzir o mundo à linguagem poética. Afinal, não se pode dizer tudo, então se diga o necessário. Trata-se de uma poesia concentrada (no sentido alemão de dichten, condensar; daí Dichtung, e Gedicht), no sentido de uma poesia que adere ao rigor e ao formalismo, evitando o relaxamento e o espontaneísmo

     João Cabral em “Inspiração e o trabalho de arte”, em sua Obra completa, fala sobre a construção do poema ou sobre o espontaneísmo, a diferença entre o elaborado e o inspirado. Poemas presos a forma ou dispostos ao discurso. Poemas em si mesmos ou poemas para dizer algo. Poetas cheios de regras e poetas sem regras, e ainda poetas que transgridem as próprias regras. Onde o autêntico, onde o expressivo, onde o formalista. Para o poeta a 'composição literária' oscila entre a inspiração e o trabalho, entre o espontâneo e o elaborado. É preciso esforço e suor para extrair poesia das coisas, caso contrário haverá poemas 'mal construídos', com estrutura pouco 'orgânica'.

     Cada autor tem sua produção a partir de uma alquimia pessoal, o talento, o estilo, a linguagem. Por sua vez, Cabral tem a engenhosidade e a metalinguagem, onde o racional é ressaltado sobre o emocional. Para ele o poeta precisa se dedicar ao 'exercício formal', aos 'aspectos artísticos'; mas assim, como não há regra universal na modernidade, assim também não há um estilo que marque uma geração. Existem tantas estéticas quanto poetas. A pluralidade de estilos refletem as multiplicidades de talentos – desde o mais formal ao mais emocional. Assim a pluralidade de espontâneos e formalistas.

     Mas quanto a poética de Cabral a construção se ressalta enquanto processo, segundo a visão do poeta, crítico e transcriador Haroldo de Campos, em seu ensaio de 1992 “O Geômetra Engajado”, pois “Trata-se de uma empresa de desmistificação do poema, que é sacado de sua aura de mistério e de inefável, e mostrado como é, objeto humano, escrito 'a tinta e a lápis', fabricado na 'máquina útil' do poeta.” (1999:81). Onde Haroldo de Campos percebe uma 'volta deliberada à lógica' do construir, ao tratar-se da

instauração, na poesia brasileira, de uma poesia de construção, racionalista e objetiva, contra uma poesia de expressão, subjetiva e irracionalista. Os poemas de O Engenheiro são como que feitos a régua e a esquadro, riscados e calculados no papel, e sua semântica funda coincidentemente um âmbito plástico de referências. (1999:80-81)

     Projeto e produção focalizada no formal e na procura do estilo que é lembrada pelo crítico João Alexandre Barbosa em sua obra A Metáfora Crítica, onde “o que se procura fisgar é o relacionamento interno entre a função poética desempenhada pela linguagem e o questionamento implícito de seus valores como tática de construção textual.” (1974:139) pois há uma mensagem entrelaçada com a forma, voltando-se sobre a mensagem, numa auto-justificação, de forma que

Fazendo das relações entre linguagem e metalinguagem o módulo sobre o qual assenta o seu horizonte de criatividade, o texto de João Cabral põe o problema de uma poética da denotação, incluindo a experiência num sistema referencial e auto-reflexivo incessante. A sua 'leitura' da realidade parece ser crítica na medida em que submete os termos através dos quais ela se realiza a um permanente discurso de indagação acerca de seus relacionamentos. (1974:139)


      Muitos poemas na obra O Engenheiro são da categoria dos metapoemas, onde claramente o poeta volta o olhar sobre o processo de construção poética. Assim o próprio poema “O Engenheiro”,

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.


     Há toda uma necessidade de medir, de fazer caber num esquadro, como um esforço para dar ordem a uma folha vazia, em branco, sem nada dizer, e que desafia o poeta a preencher com boa forma, a ser moldado pela presença arquitetada do poema,

Mas é no papel,
no branco asséptico,
que o verso rebenta.

Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral?

(O poema)

     O que pretende o poeta além de uma Lição de Poesia ? De um modo de articular palavras, para do fugir do adjetivo para o substantivo, como uma busca do mundo substantivo (ver Murilo Mendes) mais claro e menos subjetivo (ainda que subjetiva seja a escolha das palavras), mas não isento de esforço, de luta, na qual o poeta se suja de tinta e carvão, em sua elaboração sistemática,

A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.


     Sobre este labor do poeta com a poesia, uma “luta branca sobre o papel”, se pronuncia Peixoto (1983), sobre o desejo de controle sobre a matéria escrita,

Só na terceira seção de 'A lição da poesia', quando o poeta consegue separar as palavras das suas origens psíquicas, é que elas se transformam para ele em entidades funcionais, ao invés de 'fantasmas de palavras'. A substância psicológica das palavras é reduzida ao mínimo, na medida em que o poeta passa a controlá-las e selecioná-las conscientemente. (1983:41)

 
    É possível comparar com o poema “O Lutador” de Carlos Drummond de Andrade, onde a “Luta com as palavras é a luta mais vã”, onde o poeta, em sua labuta poética, está limitado pela semântica e pela sintaxe, sempre cerceado pela volatilidade e pela opacidade dos verbetes. E realmente Drummond é referencial para Cabral quanto ao processo de concepção poética, vide o poema “A Carlos Drummond de Andrade”,


Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.


     O esforço com as palavras – a elaboração contra o dom da espontaneidade inspirada pelos deuses – é um ponto nevrálgico na poética de Cabral, em sua “procura da ordem” (verso de “Pequena Ode Mineral”), como bem percebe Peixoto ao relacionar a visão do poeta com seu 'processo de composição', com seu apuramento técnico, simetria e engenhosidade verbal, enquanto construção, contra o espontaneísmo,

Cabral propõe uma visão das palavras como coisas, a serem manipuladas e combinadas, o que permanecerá um ponto vital de sua poética. O problema de transmutação das emoções interiores em poesia é solucionado pela retirada das palavras do mundo pessoal do poeta. A palavra se despersonaliza e o poeta a percebe como um objeto exterior submetido ao seu controle racional. (1983:42)


     Não sendo fruto subjetivo, mas elaborado objetivamente, o poema é visto enquanto 'máquina útil', imagem que é configurada por seus aspectos de funcionalidade, visto que a partir do poeta francês Paul Valéry, para o qual o poema é uma 'espécie de máquina' que funciona a partir de uma 'disposição poética', segundo relembra Peixoto (1983:42). mas uma estruturação que não explicita o eu (sujeito) lírico. Afinal, que 'voz narrativa' há em O Engenheiro? Há mesmo um eu-lírico? Quem expressa uma cosmovisão ou sentimentos? É o autor quem fala sem intermediários? Que 'drama interior' está aqui problematizado ou racionalizado? Um elogio exaltado da 'proporção' e da 'objetividade'?

     Mas o que se ressalta mesmo é o plano estrutural. Uma seleção de palavras em arquitetura funcional. Enquanto os adjetivos abstratos levam ao plano sensorial, ou metafísico, para Cabral a preferência pelos adjetivos concretos que demonstram sensorialidade, contato, um estar-entre-coisas, numa busca de concretude e materialidade. Para montar o poema é necessária uma seleção precisa, assim na concisão e escolha de palavras, podemos comparar “A lição de poesia”, de 1945, com “Catar feijão”, de 1965,


E as vinte palavras escolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

e vinte anos depois

Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.


     Numa clara seleção e depuração de verbetes, no manuseio das palavras configura-se a 'mecânica da criação', de onde surge poema enquanto produto de uma atividade, uma elaboração, com clareza e simplicidade, não discursividade, pois Cabral pretende com um vocabulário mínimo causar um efeito de significação máxima. Este voltar-se ao poema, tematizando o fazer poético, é ressaltado pelo crítico Antonio Carlos Secchin quando aponta o caráter metalinguístico dos poemas de O Engenheiro numa 'nova ordem' , além dos elementos que são 'geometrizados', “A segunda vertente abarca a maioria dos textos metalinguísticos do livro: 'A bailarina', 'O engenheiro', 'O funcionário', 'O poema', 'A lição de poesia', 'A mesa', 'As estações', 'A Paul Valéry'.” (1999:38)


     Evidenciam-se as dicotomias, os dilemas entre o subjetivo e o objetivo, entre o sonho e a ordenação, entre o inconsciente a clareza, em suma, entre a emoção e a razão. Segue o poeta primando pela não-emoção, com seu “carvão da emoção extinta”. Pois além de objetividade e funcionalidade, engenharia e arquitetura para o poeta significa clareza, segundo argumenta Peixoto, “Numa entrevista de 1972, Cabral faz o seguinte comentário: 'Nenhum poeta, nenhum crítico, nenhum filósofo exerceu sobre mim a influência de Le Corbusier. Durante muito tempo significou para mim lucidez, claridade, construtivismo. Em suma: o predomínio da inteligência sobre o instinto.'” (1983:48)

     Assim se destaca a arte poética de João Cabral de Melo Neto, com sua maneira 'funcional' de criar o belo, com ordenação e proporção, sem aqueles rebuscamentos barrocos, sem neoparnasianismos, mas sempre centrado no poema não um ser subjetivo, não uma voz, mas um texto arduamente trabalhado, elaborado. Explica-se assim o apuro pela metalinguagem e esta pela consciência da construção, objeto de dedicação do poeta-engenheiro.







Referências


BARBOSA, João Alexandre. A Metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974.

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e Outras metas. Ensaios de Teoria e Crítica Literária. São Paulo: Perspectiva, 1992.

COSTA LIMA, Luiz. Lira e antilira. Mário, Drummond, Cabral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

MELO NETO, João Cabral. O Engenheiro. Rio de Janeiro: Amigos da Poesia, 1945.

____________ . Poesia completa e prosa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

PEIXOTO, Marta. Poesia com Coisas. Uma Leitura de João Cabral de Melo Neto.. São Paulo: Perspectiva, 1983.

SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: A Poesia do menos e outros ensaios cabralinos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, Fundação Biblioteca Nacional, 1999