quarta-feira, 23 de novembro de 2011

sobre 'Menino de Engenho' (José Lins do Rego)



Sobre “Menino de Engenho” (1932)
do autor brasileiro José Lins do Rego (1901-1957)


Na infância a perda da inocência


Introdução


Literatura com criança e literatura para criança


A presença da criança – enquanto tema, protagonista ou figurante - na Literatura Brasileira não é propriamente sobre criança nem para crianças. A criança não recebia qualquer foco. Os enredos giravam em torno de adultos. Assim foi até a época Raul Pompeia (1863-1895, que escreveu suas memórias dos tempos da infância) e de Monteiro Lobato (1882-1948, que popularizou fábulas e clássicos ao gosto juvenil, ao adaptar pérolas do Cânone, mas não entrou no Meu Cânone) que iniciaram um estilo que podemos atualmente denominar de 'infanto-juvenil'.


O não existir 'infanto-juvenil', na literatura de outrora, não significa que crianças não fossem leitoras (ou ouvintes) com atenção. Somente que as crianças exigem uma linguagem mais próxima do cotidiano e enredos com peripécias. Assim muitas obras densas e extensas foram 'adaptadas' – vejam as 'versões enxutas' dos clássicos “Robinson Crusoé”, “Viagens de Gulliver”, “Os Três Mosqueteiros”, “Volta ao Mundo em 80 dias”, dentre outras. O que era para adultos um ou dois séculos antes, agora é acessível aos mocinhos e mocinhas.


O narrador de infanto-juvenil pode ser um adulto a lembrar dos tempos de infância e juventude, como é o caso de “O Ateneu” de Raul Pompeia. Muitas obras memoralistas poderiam ser adaptadas ao público infanto-juvenil quando o assunto for infância – outras não, pois certamente há todo um olhar de adulto a 'julgar' a infância, e uma criança, certamente, não entenderia.


Ou pode ser uma criança – fenômeno que existia antes quando uma criança adentrava a narração ao contar um fato. Um narrador-criança que fosse interessante às crianças era mais raro. Era alguém que dizia algo a uma criança, mas esta não tinha voz. No máximo, um narrador-jovem descrevia suas vivências de criança. (Assim um “David Copperfield” ou um “Aventuras de Huckleberry Finn”, obras de Charles Dickens e Mark Twain, respectivamente.)


Em “Menino de Engenho” a narrativa não é a de uma criança – ou seja, o narrador não se identifica enquanto criança, como é o caso de Huckleberry Finn, a personagem do romance de Mark Twain. Aqui em Menino de Engenho é o Narrador, o porta-voz do Autor (já tendo 31 anos), quem se permite lembrar as cenas marcantes da infância do menino Carlos. Seria mais um exemplo de memórias romanceadas. “Eu tinha uns quatro anos no dia em que minha mãe morreu.” (p. 33)


Menino de Engenho


A narração mostra logo que não é uma criança, mas um adulto que volta-se para o período da infância. Ele amadurece justamente com a perda da inocência. A consciência de si com a percepção da perda – a morte. Não uma perda abstrata – mas a ausência da mãe, vítima de um crime passional. O ciúme que nasce da possessão – o homem tem a mulher como um objeto pessoal. A perda da vida urbana e sob a tutela de parentes na vida rural.


Eis o drama familiar – o pai mata a mãe – o homem trata a mulher como bem, como serva (tema semelhante, o da dominação masculina, encontramos no romance “São Bernardo”, de Graciliano Ramos.) que desencadeia a narrativa – o menino não nasceu no engenho, mas lá ele se criou. Numa infância que marcou, uma vez que dissabores não faltaram. A memória é marcada pelo sofrer, por uma trilha de amarguras (como já dizia o pensador Nietzsche).


Assim como o memoralista Pedro Nava faz em “Baú de Ossos”, o Autor ao falar da infância volta aos pais, aos dramas familiares. “A minha memória ainda guarda detalhes.” (p. 36, c. 3) Ora a infância é um abrigo, um consolo; ora um palco de vicissitudes. Em ambos os casos é algo marcante. A infância não é esquecida, apagada, mas é uma espécie de 'espinho na carne', uma fase tanto idílica quanto angustiosa da vida. Sobre a infância se ergue a edificação da vida adulta. “A morte de minha mãe me encheu a vida inteira de uma melancolia desesperada.” (pp. 36/37, c. 3)


Com a morte da mãe e o internamento do pai, o menino Carlos é criado no engenho do avô. (Todo um mundo rural que será inspiração - e cenário - para outras obras do Autor.) Temos a imagem do coronelismo – que imperava no interior brasileiro – no avô, o Coronel José Paulino, que exerce funções de mando e consolo, meio juiz e meio paternalista. Tanto que os filhos dos trabalhadores logo desconfiam do neto do coronel – assim o menino da 'casa grande' não faz bons amigos. Na solidão ele tem a consciência de si mesmo.


Num mundo que revela-se ser de aflições – ao perder a vida de cidade, ao lado da mãe – o menino tem apenas a idealização, a fuga para a fantasia, “me acostumei a imaginar o engenho como qualquer coisa de um conto de fadas, de um reino fabuloso” (p. 38, c. 4) e “Minha imaginação vivia assim a criar esse mundo maravilhoso que eu não conhecia.” (p. 41, c. 5), onde a narração seria outro tipo de desabafo.


Assim, o menino da cidade vem tornar-se um menino rústico, nas terras do engenho, quase de 'fogo morto' – isto é, desativado – quando lembramos aqui do romance clássico do Autor, “Fogo Morto” (1943), com suas figuras quixotescas e espectrais, causos de assombração. Todas advindas deste mundo em 'sumiço' , com o êxodo rural no início do século 20, quando os retirantes do campo vieram 'tentar a sorte' nas grandes cidades (e somente conseguiram inchar as metrópoles). Logo percebemos as relações autoritárias na família. Lá impera a tia Sinhazinha, a conservar uma mente de sinhá escravocrata do século 19, insensível e mandona, a ponto de não causar espanto quando o narrador diz simplesmente que “as negras odiavam-na”.


Em seu novo lar, outra cena de morte traumatiza o menino. A morte precoce da frágil prima Lili vem a ser outro golpe sobre a sensibilidade infantil. A morte leva os bons e deixa os cruéis... Mas surge a figura da tia Maria – mãe da finada Lili – que se tornará uma segunda mãe para o menino, ali sempre hostilizado pela 'sinhazinha', a dama severa que não hesita em destruir a auto-estima da criança (“-Nunca vi um menino tão rude”) Rude o menino que prefere a vida livre aos estudos (“carta de abêcê”), com a imaginação solta pelos campos e recantos do engenho, “E as letras não me entravam na cabeça” (p. 47, c. 9)


Em sua nova vida ao ar livre, o menino conhece os limites do engenho, e os limites da vida social. Quem manda e quem obedece. Conhece mais o coronelismo, com a figura do coronel e seus jagunços, instrumentos da violência. Numa cena digna de sertão, o avô recebe a visita do cangaceiro Antônio Silvino que combatia os 'macacos' (isto é, os soldados da República recente), para manter as hierarquias tradicionais da vida sertaneja. E violência gera mais violência. (Todos conhecemos os episódios de violência no campo, não se trata de algo do passado, ou que existe apenas nos enredos dos romances regionalistas...)


Diante da agressividade da vida, o menino sofre por considerar-se desprotegido, o que gera piedade na tia Maria, “Ela só faz isto porque você não tem mãe” (p. 53, c. 12), incapaz de protegê-lo do sentimento de injustiça, “Aquela injustiça brutal despertava em meu coração puro de menino os impulsos mais cruéis de desforra”(p. 53). O menino logo aprende sobre a labuta com a natureza, quando o homem do campo enfrenta a seca numa dada época, e a enchente em outra. No plano do real, temos referências à grande enchente de 1875 (“a várzea ficou toda debaixo d'água com mais de um metro de lama”, p. 56) quando as forças naturais demonstram em desproporção e excesso a indiferença quanto ao ser humano.


O avô resigna-se diante da enchente, até prefere a chuva, a lama do que a secura. A lama, ao menos, fertiliza os solos, “Gosto mais de perder com água do que com sol”, p. 57) A mesma enchente que atinge tanto pobres quanto ricos. “Nós, os da casa-grande, estávamos ali reunidos no mesmo medo, com aquela pobre gente do eito.” (p. 59) Os pobres que se mostram vítimas do fatalismo, em submissão aceitando as intempéries e catástrofes, os desmandos, segundo se nota no olhar dos patrões, “Eles [a pobre gente do eito] pareciam felizes de qualquer forma, muito submissos e muito contentes com o seu destino.” (p. 59, c. 13) 
 

É quando o Narrador (e não menino) interfere, ao comentar o quanto os submissos confundiam a desventura, o Destino com um Deus, “Mas, coitados, com que saúde e com que Deus estavam eles contando!” (p. 59, c. 13) pois, na mesma época a preocupação do menino não era sobre as diferenças sociais, antes descobrir modos de se divertir, junto aos outros mocinhos na vida rústica, “Nós, os meninos, queríamos encontrar os estragos da cheia.” (p. 60, c. 13) O drama social diante deles, mas os meninos procuram mais brincadeiras e aventuras. “Há muita miséria. Muita fome no povo. O governo está mandando mantimentos.” (p. 60, c. 13) e “O engenho e a casa de farinha repletos de flagelados.” (p. 61, c. 13)


Mas a vida continua. A vida sempre segue adiante depois de calamidades. E o menino precisa aprender a ler e escrever. Aparecem os mestres, uns dedicados, outros autoritários. O professor Dr. Figueiredo, que deixa o menino aos cuidados da esposa, a 'bela Judite', que desperta no menino outros interesses além da leitura. Até porque, na mesma época, o menino sobre as influências do rapaz Zé Guedes, já desperto para a sensualidade, para o erotismo, o que provoca curiosidade. Também os animais no cio atraem as atenções, “a promiscuidade selvagem do curral.”


A consciência do desejo ao mesmo tempo que a percepção dos limites. A autoridade do coronel está sempre presente, limitando o menino. O narrador lembra-se ainda do quanto o coronel abusava dos 'possessivos' ao descrever suas propriedades, “seu engenho”, “seus campos”, “sua propriedade”, “suas matas”, “suas nascentes”, “seu povo”, “seus gritos de chefe”; eis o mundo enquanto posse para uma classe de 'afortunados'. É a figura do coronel no imaginário (ver outras obras do regionalismo, tais como “Fogo Morto”, “Vidas Secas”, “Grande Sertão: Veredas”, “O Coronel e o Lobisomem”), aquele senhor de terras, senhor feudal, os Barões, os Junkers (como são chamados na Alemanha)


O senhor feudal – em início de século 20 – em suas andanças de proprietário, exercendo seu domínio, reproduzindo as desigualdades sociais, onde uns mandam e outros obedecem. “Andávamos muito nessas suas visitas de patriarca”(pp. 65/66, c. 16) Realmente é de causar perplexidade, esta figura patriarcal do senhor feudal em nossa época. (Os atuais ruralistas não apreciam, certamente, tal caricatura, mas mantêm o mesmo sistema de exploração)


Um dos pilares da 'ordem patriarcal' é a religião, a instituição dos dogmas, onde há um deus que manda e uma multidão de fiéis que obedecem. Uma religião de altares e oratórios, de capelas e incensos. Exteriorizações do que não é íntimo. Uma religiosidade diante da qual o avô é indiferente. Ele mesmo percebe que a única religião 'digna' de um patriarca é o poder.


O poder sobre as vidas alheias. A fé que legitima – em nome de Deus – uma exploração do trabalho alheio. Assim é a fé no feudalismo – pilar da dominação do clero – e suseranos – sobre os vassalos. (Tanto que na Rússia czarista os servos eram 'almas' negociadas pelos senhores; vide a magistral obra de N. Gógol, “Almas Mortas”, 1842) Um exemplo? O filho do coronel – o tio Juca – sujeito estudado, que viveu na cidade, mas tem como divertimento, como passatempo, o costume de seduzir as criadas do feudo. E assim perpetua-se o poder do homem branco ao subjugar as servas negras – humilhadas pela escravidão recentemente 'abolida'...


Ainda persistem as crendices populares, por exemplo, o lobisomem, como mostra boa parte da literatura popular (vejamos o 'cordel'), e o mundo desconhecido é fonte de terror. “Na minha sensibilidade ia crescendo este terror pelo desconhecido.” (p. 77, c. 20), pois a criança tende a tornar sério até o mais fantástico sonho – acreditar em Saci e Papai Noel – a ponto de sofrer para diferenciar real de ficcional. “Pintavam o lobisomem com uma realidade tão da terra que era mesmo que eu ter visto. De Deus, tinha-se uma ideia vaga de sua pessoa.” (p. 78)


Esta mistura de real e ficcional é bem presente nos 'causos' da velha Totonha, contadora de histórias. A fazer referências aos seres fabulosos e lendas folclóricas. Histórias da Angola, da costa da África. E também referências às “Mil e Uma Noites” (os contos árabes que tanto fascinam os ocidentais, vide um Marcel Proust...) A velha Totonha tem um jeito todo especial de contar causos, com um modo de narrar que se apropria da fábula narrada, “E as lendas eram suas, ninguém sabia contar como ela.” (p. 79, c. 21), além de incluir coisas do vivenciado na que era fábula, “O que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor local que ela punha nos seus descritivos.” (p. 80)


Ao lado da casa grande ainda há a senzala, pois mantem-se a submissão diante dos senhores. A escravidão não acabou por decreto de cima-pra-baixo. Não acabou por desejo de uma princesa, ou de uma classe dirigente. Não se entrega a liberdade a alguém – a liberdade é um valor a ser conquistado. Se os escravos tivessem se revoltado e se livrado dos senhores, nossa história seria diferente. “A senzala do Santa Rosa não desaparecera com a abolição. Ela continuava pegada à casa-grande, com as suas negras parindo, as botas amas-de-leite e os bons cabras do eito.” (p. 88, c. 22) e mais adiante, nas palavras do avô, “Não me saiu do engenho um negro só. Para esta gente a abolição não serviu de nada. Vivem hoje comendo farinha seca e trabalhando a dia.” (p. 118, c. 33)


Em certos momentos o narrador é irônico – deslocado da criança que é o foco das reminiscências – diante das desigualdades sociais. Trechos assim: “a mesma alegria da escravidão”, ou “o mesmo amor à casa-grande e a mesma passividade de bons animais domésticos.” (p. 84) o que muito aproxima o narrador (e o Autor José Lins) do narrador (e personagem) Paulo Honório do romance “São Bernardo” (1934) de Graciliano Ramos (outro nome no balaio do Regionalismo). Paulo Honório que descreve os camponeses com um desprezo seco, de linguagem rústica.


Mas os meninos filhos dos trabalhadores braçais imperam sobre os da casa-grande quando nas brincadeiras, quando mostram a liberdade para travessuras. A partir das aventuras infantis, temos as descrições de vida rural, as visitas aos engenhos – o que faz antever o narrador de “Fogo Morto”, digno clássico ao lado de “Vidas Secas” e “O Quinze”, obras de Graciliano Ramos e Rachel de Queirós, respectivamente.


Temos mais referências ao coronelismo dos senhores feudais nos sertões, onde o que não faltam são “servos do meu avô” (p. 102), o engenho Santa Rosa, do velho José Paulino, comparado com o poderio de outros donos de engenho – aquele engenho do Santa Fé, do Seu Lula de Holanda, o qual “já o conheci de fogo morto” (p. 104), eixo do enredo de “Fogo Morto” (vejam ensaio em breve)


As histórias, os 'causos' do avô são marcantes, em paralelo – e comparação – com aquelas fábulas da velha Totonha. Entrelaçam coisas não vividas, falam de mundos outros – no tempo e no espaço – e excitam o interesse do menino – que será futuramente o Narrador.

Estas histórias do meu avô me prendiam a atenção de um modo bem diferente daquelas da velha Totonha. Não apelavam para a minha imaginação, para o fantástico. Não tinham a solução milagrosa das outras. Puros fatos diversos, mas que se gravavam na minha memória como incidentes que eu tivesse assistido. Era uma obra de cronista bulindo de realidade.” (p. 119, c. 33)


Em contraponto às descrições do mundo exterior, temos as análises psicológicas - “Pensava tanta coisa”, e “Eu me metia comigo mesmo” (no capítulo 25) – quando o alfinetar da consciência da mortalidade, que golpeia desde a perda da mãe, e depois a prima Lili. Ao se perceber doentio, um menino asmático, a fragilidade física e o medo da morte passam a ser sombras. Daí um olhar sobre si mesmo – diferente dos meninos que brincam, sadios, e não pensam na existência.


Quando fatos externos são narrados eles se encaixam numa série de dramas das lembranças infantis, ou melhor, não têm importância em si mesmos, mas antes são marcos das reminiscências. A enchente, o fogo no canavial, a servidão, tudo isso existe na medida em agride a sensibilidade do menino (ou a imagem do menino para o narrador).


Assim o que acontece lá fora só tem valor aqui dentro. A beleza da menina é beleza pois afeta a sensibilidade do menino, “a minha tenra sensibilidade”, assim a desabrochar o primeiro amor, a primeira perda amorosa. Ternura sempre lado a lado com a angústia, pois trata-se de um menino sensível (“a minha tenra sensibilidade”). É de se pensar como é possível um menino tão novo com amargura e pessimismo! Ou será o narrador no presente ao projetar tais afetos no menino, ser de seu passado?


Culpa e autodepreciação – é do menino ou do narrador? De quem é a consciência aqui? Não é o menino que narra – mas um sujeito que se observa no passado – o que viveu, sofreu, idealizou, suas frustrações.

Pouco sabia de rezas. E esta ausência perigosa de religião não me levava a temer os pecados. Muito depois, esta miséria de sentimentos religiosos se refletiria em toda a minha vida, como uma desgraça.” (p. 130, c. 35)


Este pessimismo, os 'pensamentos ruins', a ideia de pecado – o que uma criança entende disso? Será apenas o sentimento mais tardio, quando já é o narrador? Na verdade, o menino compartilha uma certa culpa – a culpa de 'senhor' diante da pobreza dos subalternos. Quando o tio luxurioso não hesita em se deitar com as negras – e até engravidá-las – quem se sente culpado?


Por exemplo, a dicotomia entre amor e sexo, ternura e sexualidade. O amor ele experimenta com a bela menina Maria Clara (aqui um símbolo do amor platônico, casto) e a iniciação sexual ele experimenta com uma negra da fazenda. Aliás, fato comum durante a escravatura, onde os meninos brancos, os jovens senhores, se iniciavam sexualmente nos corpos das escravas negras, submissas e humilhadas. A culpa por se deitar com as empregadas transforma o sexo em algo negativo.


O sexo impunha-me essa escravidão abominável.” (p. 131, c. 35), onde o menino (e o narrador) não vê qualquer lirismo. Apenas o sexo enquanto atividade animal, carnal, hormonal. Fenômeno de romance naturalista. Daí a mulher não aparecer de forma positiva, mas enquanto sedutora, devassa, destruidora da castidade infantil. O menino logo tem doenças de adultos, doenças de sexo. Ambiguidade entre o orgulho e a vergonha.


No despertar da sexualidade volta-se o olhar para a evidência da submissão das mulheres. Enquanto homens brancos e negros respeitam a hierarquia, a segregação, com as mulheres é diferente. Brancas e negras se encontravam iguais – submissas – na cozinha da Casa Grande. “Nas cozinhas das casas-grandes vivem as brancas e as negras, nessas conversas como de iguais. As brancas deitadas, dando as cabeças para os cafunés e a cata dos piolhos.” (p. 132, c. 36) Cenas de uma vida rural de início de século 20, com suas tradições, separações, imposições, mas aqui descrita por um olhar não-rural, mas de um menino de cidade (e atualizado pelo narrador, escritor culto), para quem o mundo rural é novidade e desafio.


O meio rural que o menino sente como um processo de 'brutalização' (ou será o Narrador que pensa assim?), com a perda de tempo útil ao ensino, ao aprendizado de alfabetos e aritméticas.

Todos me diziam que eu era um atrasado. Com 12 anos sem saber nada. Havia meninos da minha idade fazendo contas e sabendo as operaçõs. Só mesmo no colégio. Sabia ruindades, puxara demais pelo meu sexo, era um menino prodígio da porcaria.” (pp. 138-139, c. 37)

Como 'disciplinar' o menino perdido na vida de engenho? Como iniciá-lo na vida civilizada, aquela de cidade grande? Uma solução é o colégio interno – um educandário para refrear os desejos juvenis, colocar limites nas travessuras. Solução esta que os pais irresponsáveis encontram logo,

Recorriam ao colégio como a uma casa de correção. Abandonavam-se em desleixos para com os filhos, pensando corrigi-los no castigo dos internatos. E não se importavam com a infância, com os anos mais perigosos da vida. Em junho estaria no meu sanatório. Ia entregar aos padres e aos mestres uma alma onde a luxúria cavara galerias perigosas. Perdera a inocência, perdera a grande felicidade de olhar o mundo como um brinquedo maior que os outros. Olhava o mundo através dos meus desejos e da minha carne. Tinha sentidos que desejavam as botas do Polegar para as suas viagens.” (pp. 145-146, c. 39 )

Somente aos doze anos o menino vai para uma escola. Assim, uma nova fase na vida. A entrada para o mundo da erudição, do alfabeto, da escrita. Veremos a mesma fase sob o olhar do protagonista (e narrador) Sérgio em “O Ateneu” (1888, de Raul Pompeia, 1863-1895), citado aqui, e tema de ensaio próximo.

-Não vá perder o seu tempo. Estude, que não se arrepende.

Eu não sabia nada. Levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do que o meu corpo. Aquele Sérgio, de Raul Pompeia, entrava no internato de cabelos grandes e com uma alma de anjo cheirando a virgindade. Eu não: era sabendo de tudo, era adiantado nos anos, que ia atravessar as portas do meu colégio.

Menino perdido, menino de engenho.” (p. 149, c. 40)

De certo modo, o Ateneu pode ser uma continuação de Menino de Engenho, pois o romance de José Lins do Rego finda quando o menino deixa o Engenho e vai para a vida escolar, tematizada no livro de Raul Pompeia. É outro mundo – não mais o mundo rural, centro da narrativa. O mundo rural ficou como uma lembrança, um relato, um livro na estante. Uma saudade amarga. Ou um quadro na parede.




nov/11

Leonardo de Magalhaens





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Menino de Engenho” (TV Globo, 1993)

Menino de Engenho” (filme, 1965/1970)



segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Era uma vez um lugar chamado Savassi ...




Era uma vez um lugar chamado Savassi


            Antigas lendas narram sobre um lugar chamado Savassi. Lugar paradisíaco, segundo certos estudiosos, devastado por obras inúteis e vagarosas, oportunistas e irresponsáveis, promovidas pela administração pública municipal. Obras que se prolongaram por secas e enchentes, neblinas e tormentas, e acabaram por apagar do mapa belorizontino o oásis meio à vulgaridade circundante.


            Era uma vez a Savassi – famosa mas desconhecida – reduto de tribos de moicanos, cabeludos e skatistas, paraíso de madames e cãezinhos mimados, tapete vermelho para pseudo-intelectuais e poetas pequeno-burgueses, que desfilavam em mil livrarias pra acadêmico parisiense ver; enfim, vestígio final do glamour que os flâneurs-high-tech ostentam exibicionistas no trottoir vespertino.


            Mais do que isso, sem dúvida, suspeitam os estudiosos. Putas de vitrine, gangsters de shopping-center, políticos suspeitos em início de carreira, lobbistas anônimos, todos amigos do poder, passageiros clandestinos, meninos e meninas de rua, policiais corruptos, ou corruptíveis; em suma, todos lá habitavam, num labirinto de ruas mezzo asfalto mezzo jardim, mezzo concreto mezzo vitrine, ao estilo Los Angeles dos trópicos, Manhattan do mundo em desenvolvimento, Orlando dos empreendedores lúdicos, Miami dos sonhos consumistas, Paris dos boulevards artificiais, Londres da segregação social, Berlim das passadas geométricas, Moscou da solidão coletivizada.


            Relatos narram sobre a existência de contradições profundas entre o peace & love de camisetas juvenis e olhares ávidos por liquidação, tudo à venda, a cheque e a cartão, débito & crédito, todos os prazos do mercado, todos os juros negociáveis, em mil prestações. Mercadorias espreitavam transeuntes, cativavam atenções, capturavam delírios, alucinavam vontades, sutil e artisticamente, em flashes de néon, em brilhos de letreiros, onipresentes. Tudo estava ali à disposição em vitrines encantadoras que não hesitam em afagar os egos inchados dos fiéis consumidores no mundo árido da insatisfação.


            Aliás, promessas de satisfação é o que não faltava no paraíso chamado Savassi. Lá onde os transeuntes andavam topando em pedras pelo caminho, ainda mais quando as obras devastavam calçadas, ruas, asfalto, tragavam portais, entradas, sugavam paradas de ônibus, estacionamentos, aspiravam alamedas, casario histórico, sim, numa implosão que desgravitou o centro dos Funcionários até a Contorno, convulsionando os cidadãos pacatos que ali residiam, e logo debandaram. (Certos arqueólogos encontraram, mais ao sul, ruínas de casarões nas beiras e beiradas de encostas, o que leva à hipótese de que aqui outrora não apenas os pobres viviam nos morros...)


            No devastado local outrora denominado Savassi (e não apenas lá...) foram encontradas relíquias que fazem supor uma vida de luxo ao lado de uma subvida de lixo. Carros de qualidade abandonados ao lado de latas enferrujadas; casarões elegantes que abrigavam casebres nos quintais; ruas iluminadas que acolhiam senhoras de renome e damas-da-noite, além de estudantes universitárias que adoravam acompanhar executivos. (Um trabalho colaborativo deveras relaxante, outrora denominado, talvez uma gíria, não se sabe ao certo, de 'programa', segundo os melhores estudiosos.)


            Um relógio de sol parecia assinalar o marco central do lugar outrora denominado Savassi, onde os jovens apocalípticos conviviam com os jovens integrados, enquanto os primeiros aguardavam o fim do mundo – e o fim das infindas obras – e os segundos reclamando dos prejuízos, uma vez que não lucravam com as licitações das obras.  Ambos deslocados entre calçadas desertificadas, fachadas decadentes, edifícios disputados, estacionamentos lotados, gente dispersa, itinerários desviados, reclamando de operários e clientes inadimplentes, donos de cachorros mal-educados, que gratificam os canteiros centrais com saudáveis fezes, ou carregadores de mercadoria que estacionam fechando o cruzamento, ou pais de estudantes no portão do colégio onde paravam os veículos em fila dupla.


            Sim, um lugar aprazível, onde o convívio diário entre diferentes, de diferentes classes sociais, mostrava o apogeu da democracia, da tolerância racial, da aceitação recíproca, da vida bela numa aglomerado de casas, casarões, edifícios, lojas, shoppings, lan-houses, cafeterias, livrarias, spas, salões de beleza, pet shops, floriculturas, pontos de táxi, torneiras estrategicamente localizadas para os lavadores de carros nos semáforos. Sim. Civilização plural e hospitaleira, cantada & louvada por poetas, vates, bardos, aedos, cordelistas, sonetistas, autores engajados e literatos-de-torre-de-marfim, em versos e epopeias e sagas de valor quiçá universal e atemporal.


            Contudo, toda esta amostra de vida civilizada, de violência sublimada, de arte enlatada, de estética comercializada, de satisfação mercantilizada, de felicidade estandartizada; todo este delírio de venda & compra, este bel-prazer da vida mercantilista, este outdoor do sonho pós-moderno; em suma, este lugar outrora denominado Savassi, implodiu, desabou, foi tragado pelas profundezas, quando finalmente as obras públicas ousaram perfurar suas entranhas para a construção do tão prometido e proclamado metrô, desta vez realmente subterrâneo, e nada mais restou, além das ruínas hoje redescobertas. Devastada, esquecida, agora recentemente recolonizada,  quando, certamente, alguém viu a primeira flor que rasgou o asfalto.





31out / 1nov11




Leonardo de Magalhaens




terça-feira, 1 de novembro de 2011

CASTELO DE CARTAS - conto



CASTELO DE CARTAS


    Estava diante do literato, modestamente renomado. Conversávamos, isto quando não me dispunha a rondar as mesas das roletas, atento aos movimentos frenéticos das esferas e o acaso dos números. Acariciava o veludo verde das mesas de carteado. Também pinçava quitutes das bandejas dos garçons, e , quando no balcão, exigia drinks exóticos – aos quais desconheço. Bebericava os tais drinks exóticos e dedicava certa atenção ao literato – abordava a questão das diferenças culturais, o que é virtude, numa dada sociedade, pode ser vício em outra, etc. E o incrível: ele não abandonava aquele ar de Prêmio Nobel.


    Um luxuoso cassino – fechado para reformas, após o atentado. Edifício imenso, com suas boates, salas de jogos, escritórios, etc. E ainda, lá em cima, através das amplas janelas, contemplávamos a cidade iluminada – e o alvorecer. Sim, passara a noite em diálogos surreais ou antropológicos e já o dia me surpreendia. O sol logo golpearia os óculos do literato. Sim, os óculos, imprescindíveis , não? Mas se o homem podia comprar umas lentes de contato! Esse deslizes, pequenos detalhes, é que me aborrecem. Que interesse eu tinha em culturas aborígines? Foi por isso que me levantei, desculpas, meu velho, mas dê-me um minuto, disse e procurei o rumo dos banheiros. Era um longo corredor, onde saudei pessoas, sorri para outras, e até esperei o revoar dos anjos.


    Mas, antes do W.C. , a sala de leituras. Revistas, jornais, algumas brochuras, títulos e títulos expostos para leitura. Que seja proveitosa. Não preciso dizer que a sala estava vazia. Aproximei-me para ler uma manchete – do dia anterior, claro. Mais balelas sobre o novo presidente. Mais sensacionalismo de alguém da bolsa de Valores, aqueles jovens bitolados que seguem junto ao Murro. Mais um editorial cheio de messianismo. Aí é que fui mesmo ao toalete. Enfiei a cabeça sob um jorro de água fria – e sobrevivi.


    Voltei pelo mesmo corredor. (por que me lembro de tantos detalhes?) aceitei uma taça de champanha – comemorávamos o quê mesmo ? Procurei a mesa de antes, até acho que a encontrei, mas nada, nenhum sinal do literato. Esperei. Esses caras são assim mesmo, meio excêntricos, somem de repente.


    Mas o dia nascia e eu cabeceava, quase um cochilo. Voltei ao meu apartamento assim. À pé mesmo, tudo perto. E aquele ar de algas marinhas. Ah, sentir o Rio, a Ilha e o Mar. Andar pesado tal um pão encharcado. E ao meu redor os primeiros trabalhadores no reconhecimento de suas largas avenidas. Um skatista com um lenço e um gesto nacionalista – as estrelas e as listas. Mas um mendigo já ressuscitava diante de uma loja de departamentos, e as luzes piscavam sobre um manequim. Sem cabeça.


    Sei que entrei na torre, na minha torre. Identifiquei-me, distribui saudações, sorri, dissolvi as dúvidas do motorista, mas o senhor veio andando?, sim, meu caro, sou por acaso paralítico? Uma caminhada matinal é sempre saudável !”, tive a dádiva de um elevador à espera. Mas é lá encima que esperava-me o incômodo. Pois Sylvia foi acordada com o terremoto dos meus sapatos – o idiota aqui nem pensou em entrar de mais! E logo passando ao interrogatório. Coisa dos Serviços de Inteligência. Sim, mas como vou discutir com essa morena alta, de corpo atlético, e outros lugares-comuns, que vive correndo numa esteira e conferindo a balança. E como discutir com a TV ligada? Pois era sempre assim: a primeiríssima coisa que fazia ao acordar era usurpar o controle da telinha e acompanhar a sessão animada. Então sentei-me num dos sofás mais confortáveis da América. E juro que tentei dormir.


    Mas como dormir na maior metrópole do mundo? Um clamor de ambulância me alcança à meia milha do chão. Comecei a procura por café, e, se possível, torradas. E Sylvia na esteira, sincronismo, batidas por minuto, milhas percorridas. Lembro que bebericava o café e via notas aladas. Todo o dinheiro que eu perdera na noite passada. Por que tudo tão nítido agora? Lembro que agarrava o paletó e saía. Claro, depois poderia encontra-la, para almoçarmos, andares acima, na academia. Mas aqueles olhares eram de protesto? Ainda insistiria em saber aonde eu ia? Bolas, isto não está nos contratos ! Vou ao banco. Preciso apunhalar um gerente.


    Foi assim aquela manhã de setembro, quando dormi apenas duas horas. Fechei a porta e fui escolher um dos elevadores. Esperava, mas a vontade era de descer pelas escadarias, desabando degrau a degrau. Mas o teletransporte finalmente foi ativado. (preciso ironizar, para não desesperar) E já pensava em dispensar o motorista. Um automóvel de luxo para percorrer dois quarteirões! Vou ao banco cumprimentar George e beijar as sedosas mãos de Bianca. Que falta vou sentindo de todos! Ah, como sou comovente!


    Apertei na portaria e ate pensei em perguntar pela correspondência. Mas o que me interessou mesmo foi um tremor, um chocalhar das estruturas. Uma explosão escandalosa fez chover vidro moído. Ali na calçada, um dilúvio de cacos. E a explosão apresentava os seus ecos, e os berros que o edifício soltava era terrificantes. É claro que fiquei sóbrio de repente. Liguei para o apartamento. Nada. Corri escadas acima, encontrei pessoas alarmadas. Terremoto! Ah, como tentavam se enganar! Fogo! Acidente! Avião desgovernado! Sempre alguém tentando rotular o absurdo, classificar as ocorrências para as autoridades,para a sua companhia de seguros.


    Mas aquilo era nadar contra a correnteza, pois todos corriam em p6anico, sem exceção. Estava de volta a rua, quando os bombeiros chegaram. Os porteiros igualmente corriam gritando avisos, ou solícitos obedecendo ordens. Aí então eu vi – estático no meio da rua – realmente os andares superiores em chamas.


    Corri, longe das calçadas, apalpando os bolsos, só para notar a falta do celular, e derrubei curiosos, esqueci o motorista – onde estaria? Mas o mais incrível ainda viria. Ouvi um ronco, outro Airlines. E direto sobre a outra torre! Acidente? Façam-me o favor! Tratava-se de um ataque! E que os céus nos salve de Pearl Harbour! E eis os destroços caindo, o deslocamento do ar, e eis a entrada do cassino!


    Corri ao salão de jogos – já paralisado. Alguns atentos às janelas, outros encarando a telinha que um dos garçons ligara. Acidente? Dois aviões? Ataque! Nas sacadas se aglomeravam os jogadores, abandonando suas moedas, para, atônitos, perplexos, assistirem uma cena de guerra ao alcance da mão.


    Se eu me lembrara de Pearl Harbour, um outro menciona o bombardeio de Berlim, e, um fulano, até os mísseis inteligentes sobre Bagdá. Eis, meu velho, que a guerra é entregue à domicílio! O que significa aquilo? Um croupier apavorado, quem nos ataca? Nem sugeri os árabes malucos, Nós mesmos.


    Mas aí engasguei – a primeira torre, a minha torre, desabava! Um castelo de cartas! De cima a baixo, num cogumelo atômico de pó e destroços, e o horror peregrinava por entre os edifícios. Prosseguia cobrindo os transeuntes. E a névoa fétida seguia ao longo das portas, um anjo da maldição, soterrando as bancas de revistas!


    Alcancei as escadas - nada se via. Meu Deus, Meus Deus!, era tudo o que se ouvia, todos fiéis deístas de repente. Maldição. Novelos de fumaça negra nublavam o fragmento de azul lá encima. E – horror, horror – vultos se atiravam da outra torre. Fogo, fogo, era a única palavra a brotar de gargantas esfoladas. Ao meu lado, o desespero do literato – saído não sei de onde. Ele esfregava um lenço nas lentes e esgares de ansiedade turbilhonavam em seus olhos. Num dos edifícios do Centro, aquele outrora sob a sombra das Gêmeas, se encontram os escritórios de seu editor, e lá estão os originais de importante obra, recentemente entregue para publicação.


     Não entendo o que ele diz, ou berra, mas, perplexo,percebo que o homem, ao contrário de fugir da névoa, da fumaça asfixiante, segue, lenço no nariz, direto para dentro deste, a bracejar contra o horror, para alcançar as ruínas do Centro. Nem posso segurá-lo, enlouquecera. Sei que jamais o verei novamente. E este sentimento de perda me lembra algo, me lembra alguém...


     Empurrado pelos que fogem, Corra, idiota, Saí fora, ainda tenho diante dos olhos os vestígios das torres, uma coluna de fumaça, tal uma sombra, um espectro do corpo falecido, então a lembrança novamente me lacera. Lá acima as chamas, lá acima uma mulher corre na esteira, rindo das audácias do Mickey.


 

    dez/04


 


     Leonardo de Magalhaens