terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Poética enquanto uma voz de Sabedoria . Antes que a lua enfarte. BH 2024

 







sobre Antes que a lua enfarte [2024]

obra poética de Rogério Salgado 



Poética enquanto uma voz de Sabedoria 



Introdução



    A Poesia vem a ser uma voz ancestral que se manifesta em coletivo e num contexto. Somente com o avanço da civilização, e o processo de individuação e de introspecção, passou-se a um fenômeno pessoal de leitura silenciosa. Toda poesia era coletiva e performática. Muitas vezes ligadas aos cultos de magia e fertilidade. A voz do Poeta era a voz de um ancião, um sábio, um xamã, um eleito dos deuses.


    O Poeta enquanto Sábio, enquanto doador da Sabedoria, é a figura viva de um líder místico, a trazer verdades de um mundo além, cheio de revelações. A pessoa do poeta enquanto xamã é marcada pela maturidade, pela idade avançada e pela experiência acumulada. A voz da experiência se derrama sobre a audiência de neófitos, os inocentes do conhecimento, ainda cheios de expectativas, presas fáceis do destino – já domado pelo Sábio.


    Arte para o artista é criação a partir de si mesmo – tecendo teias de palavras, acumulando matizes de cores, moldando formas novas – e, no caso do poeta, do cantor, do escritor, é criar uma voz peculiar, marcante, estilosa. Mesmo a escrever sobre o passado, o finado, o desfeito, sua força criativa na vivacidade – esforço novo pela re-criação, inovação, surpresa, ir-além de expectativas.


    Assim, o poeta e crítico literário britânico Alfred Alvarez [1929-2019], em seu The writer's voice [A voz do escritor], defende que "escrever é literalmente uma arte viva e também criativa. Simplesmente não acontece de os escritores 'pararem, inertes, como um espelho da natureza', criando assim uma imitação da vida; o que criam é um momento da vida em si." [2006, p.19]


    A voz de sabedoria do Poeta atua como um testemunho da passagem do tempo, diante do processo de maturidade, que exige um olhar para trás, onde desfila o passado, que precisa ser recuperado após uma introspectiva 'busca do tempo perdido' como encontramos nas obras dos romancistas Machado de Assis e Marcel Proust, e também do memoralista Pedro Nava, que ousaram resgatar o 'tempo perdido' transmutando-o em criação literária.


    Ao comparar as escritas e as obras de Machado e de Proust, o crítico literário Paulo Venâncio Filho, em seu Primos entre si, aponta a questão do tempo, a passagem do tempo, como um dos componentes principais da estrutura.


    "Entre o tempo que agimos e o tempo que pensamos, entre o tempo que vivemos e o tempo que recordamos, existe um descompasso, um desnível vivencial. A vida é rápida e curta, o pensamento lento e infindável; como se houvesse um desajuste entre a vivência e o tempo, somos ultrapassados por nós mesmos. O passado é uma construção de equilíbrio precário. [...] Cada vez mais diminui o tempo para que os indivíduos se deem conta dos seus atos, pensamentos e sentimentos. Cada vez mais diminui o tempo do Tempo, o tempo para o Tempo." [2000, p. 102]

 







    Nova obra do poeta Rogério Salgado



    A obra de maturidade "Antes que a lua enfarte", lançada agora em início de 2024, mas escrita em 2022 e 2023, é uma espécie de um "em busca do tempo perdido" do poeta fluminense-belorizontino Rogério Salgado, o "poeta ativista", em suas quatro décadas de carreira jornalística e literária, onde a total sinceridade transborda e deixa confundir obra e autor, escrita e vida.


    É fundamental a consciência da passagem do Tempo enquanto mestre e tutor do Poeta, e o Tempo que confere um peso sobre os versos líricos e profundos dos poemas, assim de um belo poema tal qual "Tempo", que traz uma forma drummondiana, a voz do poeta maduro,


O tempo segue a estrada 

e a gente vai ficando para trás 


nossos cabelos se enevando 

e o frio na alma que aquece a imaginação 

esse cinema que já assistimos 

mas não fugimos de uma nova sessão.


[pp. 52-53]



    O tempo passado, o passado perdido, que é fonte de tristezas e alegrias, remorsos e nostalgias. Mas sem o tempo passado o artista, o poeta não teria experiência para falar de si mesmo e dos outros, todos colegas viajantes no mesmo fluxo do tempo, que arrasta tudo e todos rumo ao futuro.


Há tempos / em que o tempo 

temporariamente volta 


...


Há tempos no meu coração 

coisas que me fazem um pouco triste 

pela certeza que o passado passou

[...]


[Aqueles tempos, pp. 68-70]



    Em sua maturidade biográfica e autoral, o poeta Rogério Salgado alcança a maturidade e a fleuma de um Carlos Drummond de Andrade em sua constatação de que o passado – e aqueles que passaram – ainda estão presentes e vivos nas lembranças cultivadas carinhosamente. Salgado lembra dos amigos e parentes que já partiram, muitos sem sequer se despedirem – em época de pandemia e de desgoverno.


Cada dia que passa incorporo mais esta verdade, de que eles não

vivem senão em nós 

e por isso vivem tão pouco; tão intervalado; tão débil.

Fora de nós é que talvez deixaram de viver, para o que se chama tempo.

E essa eternidade negativa não nos desola.

[...]


[CDA, Convívio, p. 85; in Claro Enigma]




    Assim tal como se manifesta a voz de maturidade a la Claro Enigma, temos a voz politizada, sem ser partidária, de um A rosa do povo, "Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos." com um protesto poético contra as desigualdades sociais e as opressões políticas de des-governos genocidas, 


Antes que me enganem 

antes que coturnos andem 

sobre nossas cabeças

não vou esmorecer. 


Não acredito em generais 

muito menos nos animais 

que nos discursam 

mentiras 

verdades para muitos.


[Prece, p. 32]



    O poeta tem esperanças na justiça – seja terrena ou divina – contra os desmandos e descasos públicos e até tentativas claras de desordem política e subversão da ordem democrática, como os eventos de depredação e violência no dia 8 de janeiro de 2023, com o vandalismo dos ‘cidadãos de bem’ avançando sobre prédios da Praça dos Três Poderes, em Brasília DF.


mas a justiça que não é cega

fez escorrer para os cárceres

da história 

multidões alienadas 

que já não podem contar 

com seus deuses de barro. 


[Naquele domingo, p. 25]




    O Poeta não transforma sua poesia em protesto ou panfleto, pois está plenamente consciente dos limites da poética e do trabalho formal de congregar discurso e técnica, a mensagem e os símbolos, sempre imerso em imagens densas e desconfortos existenciais que esperam ser desabafados em palavras urgentes, mas antes talhadas em sua estética,


Versos são imagens do que somos 

ao nascermos novamente 

nas linhas de um poema simples 

como todos os prováveis poemas 

que deixaremos para o futuro 

dos que virão nos ler um dia. 


[Verbo transitivo, p. 47]



    Os limites da Poesia são aqueles da Linguagem – que contornam nossa visão do mundo, emoldurando nossas expressões e deixando muitos ‘ruídos de comunicação’ – que é criação humana e humanamente está sujeita às metamorfoses culturais dos coletivos humanos. A Linguagem não consegue dizer tudo – e a Poesia se esforça na “luta mais vã” para extrair água limpa da rocha. Mil coisas estão fora dos versos e rimas dos poemas, mil preocupações e “o preço do arroz”, mas o Poeta sabe que o poema em si contém seu próprio universo. Sim. O Poema apenas pode falar do poema.



porque no poema cabe muito:

a preocupação alheia 

a necessidade de se doar 

e se fazer irmãos 

numa comunhão com Deus 

não importando se acreditamos ou não.


No poema cabe a humanidade.


[O que cabe no poema, p. 27]

 







Conclusão 



    É assim que, mais do que beleza, os poemas de Rogério Salgado, em Antes que a lua enfarte, trazem Sabedoria. O Poeta tem muito a ensinar e vem compartilhar sua experiência de vida conosco. Sinceridade e verdade sempre em seus versos. O poeta Rogério Salgado é, assim, a voz da Sabedoria numa poética que reescreve e atualiza sua obra literária – para um momento de crise existencial, cultural e política.


    Consciente de sua importância na cena cultural de Belo Horizonte / MG, o poeta Rogério Salgado não brinca em serviço, a sua labuta constante. Ele não perde tempo e não quer confiscar o tempo de leitoras e leitores. Não é seu objetivo contar entre vanguardistas e beletristas. A Poesia não é um beletrismo, de semideuses em ‘torres de marfim’, mas uma ‘mensagem numa garrafa’ que alguns terão a oportunidade de ler. A Poesia é para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir. A Poesia é para quem merece.


Poesia exige maestria / uma regência orquestrada /

com partituras verbais / e muitas notas musicais / 

burilando o que será escutado / numa sinfonia silenciosa. 

[Sinfonia silenciosa, p. 19] .





Jan24



Leonardo de Magalhaens 

Poeta, contista, crítico literário 

Bacharel em Letras FALE / UFMG 

Canal Youtube LdeM Literatura Agora! 


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Referências 


ALVAREZ, Alfred. A voz do escritor.

trad. Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2006.


ANDRADE, Carlos Drummond. Claro Enigma.

São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


____________ . A rosa do povo. 46 ed.

Rio de Janeiro: Record, 2022. 


SALGADO, Rogério. Antes que a lua enfarte

Belo Horizonte: Vereda, 2024.


____________ . Poeta Ativista. Belo Horizonte:

RS Edições, 2015.


VENANCIO FILHO, Paulo. Primos entre si.

Temas em Proust e Machado de Assis.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.



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