Sobre
Onze
Mil Virgens
[2014]
de
Wilmar Silva de Andrade [MG, 1965-]
De
volta à safra da AgroLírica
Em
sua nova obra Onze
Mil Virgens
[2014] o poeta e performancer Wilmar Silva de Andrade (ou Wilmar
Silva, ou Joaquim Palmeira) volta ao seu estilo na estética batizada
AgroLírica, após as aventuras com a linguagem pela linguagem nas
obras Z
a Zero
[2010] e eu
te amo
[2014], mais próximas da anti-lírica, ou da ironia iconoclasta.
Pois
o poeta agroLírico está de volta ao estilo que o consagrou em Çeiva
[1997], Anu
[2001], Arranjos
de Pássaros e Flores
[2002], Cachaprego
[2004] e Estilhaços
no Lago de Púrpura
[2006], no qual a relação do sujeito poético com a Natureza é de
idealização & atração, em linguagem áspera & lírica, a
seduzir & agredir tanto o ser amado quanto o[a] leitor[a].
Afinal, o poeta, ser humano, não é apenas ser natural, mas
indivíduo de cultura. É constituído
de linguagem,
e somente com esta pode expressar-se.
Contudo,
o poeta agroLírico assume seu lado anímico, tal qual um xamã, ao
apresentar um mergulho no mundo natural, sem bucolismos, mas antes
contato com a dor e violência, “Eu,
alma do mato, acendi o espelho / da visão mas não amadureci o
olhar”
(Lâmina). A Natureza é indiferente a nós, não sofre conosco, e se
agredida revida sem piedade. Homo
sapiens
é apenas outra espécie que rasteja no planeta, a mais consciente e
a mais afastada, a espécie que mais agride a Mãe-Terra.
O
poeta não é ecológico, nem ecologista, não é ativista pró-Kyoto,
mas sua poética tem força de denúncia, sendo uma forma de
testemunho. Pois, ao perdermos nossa relação com a Natureza,
passamos a ignorá-la e devastá-la, ignorantes que somos dos revides
de terra e clima. Tremores, tsunamis,
inversões térmicas, tudo vem a golpear-nos.
O
poeta está bem ciente de si, das suas potencialidades, apresenta um
longo histórico de experimentações, então fica difícil julgá-lo
apenas por um ou dois livros (o que muitos críticos fazem, e perdem
o rumo e a credibilidade...) visto que trata-se de uma carreira
de avanços e recuos, sem temores. Ele está adiante dos leitores,
não pode ser previsto. Quando achamos que o poeta fará X, ele vem
com Y, e todos ficam boquiabertos. É o ponto positivo, ainda que
muitas tentativas sejam negativas. Ele sabe se desconstruir, assim
como desconstrói a linguagem. A questão é esta; só o poeta pode
se superar. (Devemos torcer para que ele consiga sua construtiva
desconstrução...)
Os
poemas nos fazem lembrar as fases introspectivas de Lágrimas
e Orgasmos
[1986; 2002] e Moinhos
de Flechas
[1991], também de transição nas Flautas Agrestes, e as fases
agrolíricas de Çeiva
[1997], Pardal
de Rapina
[1999] e Arranjos
de Pássaros e Flores,
com o entrelaçar de amor & agressão. As imagens da Natureza são
usadas como ásperas
metáforas
da criação (agro)lírica. O sujeito poético está às voltas com
os rompantes dos próprios sentimentos, tal qual uma besta selvagem,
pronta a abraçar e a devorar. Ele está disposto a agredir -
verbalmente ? - os outros e a si mesmo. Para escrever, ele precisa se
domar!
o
meu destino é domar meu potro
fingir
até o derradeiro instante e ar
que
sou mistura de ferpas e pedra
o
meu destino é tratar meu corpo
como
se trata o boi no campo e vau
de lamber os cochos do
meu sal
(Queda)
Se
a relação consigo mesmo já é de doma, domesticação do ser
selvagem, imaginemos a relação com os outros! O ser amado é também
um[a] ente a ser domado[a], enlaçado[a], apaziguado[a]. A relação
amorosa é uma agressão consentida? Ou suportada? É uma questão de
domar o outro? O sujeito selvagem precisa de uma igual selvagem para
compartilhar sua aspereza lírica? Até as metáforas
são carregadas de mundo natural, ainda que revelem ecos de
romantismo (a presença da paisagem, p.ex.) mas sem bucolismos, uma
vez que a fauna escolhida – os predadores! - é símbolo
de violência. O Outro – homem ou mulher – é animal selvagem que
precisa ser amansado pela conquista amorosa, desabrochada no
desassossego do Eu,
um estranho desejo eu
ando carregando
preciso de uma mulher
doída
selvagem, desvairada,
em estado de mutação
sim, eu preciso de uma
mulher louca
que tenha cabelos
longos da cor do pôr do sol
tão longos quanto a
distância que separa
o punhal na mão do
homem é a suçuarana do falcão
(Dissonâncias)
e
teu
corpo pleno em meu cume
ardeu
meu sexo no estalo do viço
tua
clave no clarão da manhã
riscou
até cortar e muito sangrar
(O
Albatroz)
e
também,
o
teu corpo é a insânia de mim
traços
tênues que tanto apavoram
e
me deixa em êxtase no matagal
(Tez)
O
poeta quer domar o outro assim como vem domar
a si mesmo – e percebe que é a linguagem
que precisa ser domada. A linguagem que é a única forma de relação
com o mundo – ele está ciente, ele o experimentador por natureza –
mas esta é incapaz de expressar seu Eu em totalidade. Em que nível
ele é selvagem? E em que nível ele é civilizado? Onde o ser
da linguagem
se localiza? Não será a linguagem sua prova de Cultura? Logo,
desconstruir
a linguagem não seria a forma de voltar ao Natural ? Então ele se
sente o Miserável
do
metapoema,
A todos eu pudesse
escrever os poemas
Como se escreve
Tijolos Paredes Fogo Camas
Tecidos Os corpos que
vivem As casas
Onde os corpos andam e
param como fossem
A mesa O campo de
arremessos As bocas
Que falam As palavras
mais quentes e Também
As mais frias A todos
eu pudesse escrever
Os
poemas invioláveis e estranhos mundos
Entendemos
o poeta! Sim, a linguagem é por demais abstrata!
Esta é incapaz de apresentar (sequer representar!) a
concretude
do mundo, pois ao dizer tijolo
ele não está de posse do objeto tijolo, assim como diz casa,
pedra, farpa, puma, fogo,
ele está distante de tudo! Nas palavras ele não pode habitar, se
ferir, se cortar, ser devorado ou se queimar! As palavras são por
demais ocas
para apontarem o quanto ele ousa
expressar! Então vem o desesperar! (Daí muito de sua poesia atual
ser biosonora,
dada a uivos & gemidos, vociferações & grunhidos...)
a
palavra mais bela, rainbow
não
é potro nem novilha nem paradise
é
que alço e faço
o
animal ficar alado
(Alado)
Em
plena AgroLírica, onde a aspereza importa mais que a sonoridade
(exceções são Anu
e
Cachaprego,
claro, poemas-livros feitos, sobretudo, para leitura em voz alta), o
sujeito poético tem interesse em passar a limpo sua memória
selvagem (no sentido de não-tratada, não-ressignificada) como uma
série de metáforas
que a Cultura absorve sem digerir. O quanto somos animais? O quanto
temos de vida-de-gado? O quanto somos guiados pelos instintos? O
quanto somos Natureza?
eu
queria ser natural
eu
queria ser natureza
eu
queria ser ser
eu
queria ser vegetal
eu
queria ser árvore
eu
queria ser ser
(Ser)
e
um
bicho de fogo renasce
de
dentro de mim
uma
montanha com espectro solar
e
prisma de esfinge
(Ceticismo)
Com
a linguagem o poeta está em combate, sem tréguas, do nascer ao fim
do dia, sem meios-termos, pois ele está só diante da própria
expressão : ou
ousa dizer ou deve calar-se.
Vestido de linguagem, ele está diante do Outro[a] que é doçura &
aspereza, quando deseja domar & ser domado, sabe-se ferido e
assim disposto a ferir, como uma compensação violenta pela
expressão dolorida, que é rejeitada, “por
onde vais que não me ouves / murmuro teu nome pela estrada / e o que
vejo não passa de estio”
(Vadia), o que motiva o círculo vicioso de amor & ódio, fruto
do ressentimento, “ouço
teu ir dentro da noite / e fico preso em mim”
(O Pão) e “tantos
os riscos nesse mapa / não sei por onde seguir / onde estás que não
me ouves”
(Perdição).
Lutar
com as palavras é a luta mais vã, já escreveu o itabirano Carlos
Drummond, ou mais
áspera,
eu diria, e o poeta agroLírico sabe bem, quando seu sertão de
infância e juventude está disperso em lembranças & palavras
incapazes de trazerem o calor, o suor, a penúria, o solo rachado, as
árvores raras. O sertão é dentro da gente, como já disse o
cordisburguense Guimarães Rosa, ou o
sertão é uma parte isolada de terra,
o poeta declara em Pássaro Serrado, e somente assim podemos
retratá-lo, sem a aspereza que experimentamos ao vivenciá-lo.
(Assim muitos escrevem sobre a miséria, mas sem senti-la. Falar da
fome do outro é mais fácil...)
O
poeta diante do outro, ou do[s] leitor[es], sente que a linguagem não
é suficiente, que ela não é veículo confiável de comunicação –
sua poesia visa comunicar! Ele que busca o diálogo! - a ponto de um
desabafo, “não
falamos mesma língua / não cantamos o mesmo latim / nem soamos o
mesmo som”
(Som), o que impele sua necessidade de testemunho – das asperezas
da infância, da busca do pai, do sofrer da mãe, da penúria de sol
a sol no cerrado.
o
sol escalda os ombros
arde
os olhos amadurece a pele
mina
suor nas virilhas
escorre
sumarentas nas coxas
(Errante)
verás
que minha vida é delirar
com
o sertão que acode
(Vivência)
mesmo
que eu faça um poema
árido
e torrencial é o sertão
ainda
sim absorvo
setas
de miosótis e durmo
(Lenitivo)
É
sua necessidade de confissão, testemunho, expressão, diálogo que
nos atrai em Onze
Mil Virgens,
livro-memória, que se baseia na vida áspera na fazenda de mesmo
nome, em Rio Paranaíba, no triângulo mineiro, este espaço a ser
recriado numa estética batizada AgroLírica, entrelaçada não só
de desabafos, mas de construção poética nos limites da linguagem,
aliada & adversária do poeta Wilmar Silva de Andrade, que só
tem um desafio diante de si: superar a si mesmo, em sua arquitetura
textual tecida de ousada desconstrução.
07/08Jul/15
Leonardo
de Magalhaens
[Leonardo
Magalhães Silva]
Bacharel
em Literatura / Fale UFMG
mais
poemas
Meus
artigos anteriores sobre a obra de WsdeA
ensaios
de outros críticos / entrevistas
http://esquinaliteraria.blogspot.com.br/2011/02/silvaredo-e-colheita-de-wilmar-silva-ou.html
http://www.jornaldepoesia.jor.br/wilmarsilva2.html
...
Nenhum comentário:
Postar um comentário