terça-feira, 24 de setembro de 2024

Conto. Fim de expediente. No bar. by LdeM

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Conto


Fim de expediente. No bar.



    Ontem conheci o Silvano. No bar mesmo. Não lembro de ter visto o cara por lá antes. Mas parece que o Silvano já me conhecia. Um cara bem tranquilo, bem zen, fala pouco, assim sempre calmo. 


    Eu estava no bar desde o fim do expediente na gráfica. Vi o Jailson na praça e seguimos pro boteco. Lá tem uma mesa no segundo pavimento que a gente sempre 'aluga' até o bar fechar. 


    Eu continuava com umas dores no peito e que não passavam. Eu até me acostumava. Devia era procurar um consultório ou posto de saúde. A gráfica não pagava plano de saúde para funcionários. O pessoal do escritório é que tinha grana pra pagar por conta própria.


    Acontece que a gente só ficava bebendo, ouvindo um Lulu Santos ou Adriana Calcanhotto, e contemplando a paisagem: as belas que saíam do serviço ou seguiam para a happy hour


    O tempo passava e já era de noite. O primo do Jailson, o Ribamar, chegou e ficou tagarelando sobre olimpíada em Paris. Eu lembrei da Mulher Maravilha correndo numa maratona....


    A dor no peito ora ia ora voltava. Realmente eu estava precisando fazer uns exames. Melissa bem que dizia. É nessas horas que eu me arrependia de ter deixado a Melissa. É que a gente brigava muito... Ela vivia me chamando de bebum e outros deboches. Teve uma vez que eu desci a mão. Foi a briga final. Eu fui embora. 


    O Jailson queria ver as Hildas na descida da rua da Bahia.... O Ribamar parece que esperava alguma conhecida aparecer ali. Eu fiquei sentado bebendo e ouvindo o Milton Nascimento. Amores perdidos etc. Pelo menos eu tinha meus amigos.



    De repente, eu estava no chão. Acho que tinha caído da cadeira. Será que cochilei? Ou eu estava levantando para ir ao banheiro?


    Lembro de ouvir as vozes do Jailson e do Ribamar me chamando. Então eu vi uma mão e alguém ao meu lado. O Silvano. Pessoa simpática que me ajudou a levantar. 


    Onde os meus amigos? Devem ter se preocupado e descido pra chamar alguém, tipo o dono do bar... Só o Silvano ali tentava me acalmar . Que eu me sentasse... Se tinha melhorado a dor no peito... Como ele sabia?


    Acho que ele deve ter percebido quando eu caí... Devia estar apertando o peito. Sim, uma punhalada no coração! Saudades de Melissa? Eu não era de ficar sentimental assim...


    Silvano sentou-se na cadeira ao lado na mesa, onde antes estava o Jailson. Ele falou pouco e muito calmo. Se a dor tinha passado que eu me levantasse, pois andar me faria bem. 


    Assim descemos a escada e saímos na rua. Quem passava nem me olhava na cara. Também não me lembrava do pessoal. Vi o dono do bar, o Jonathan, fiz um gesto, mas ele não me viu. Também tanto freguês nesta hora...


    Saindo na rua andei meio desorientado. O Silvano explicou que meus amigos logo voltariam. Eu queria esperar? Disse que sabia ir pra casa. Não adiantava esperar carona. Todo mundo bêbado só voltava de táxi ou Uber. 


    Estranho que não vi qualquer conhecido. As pessoas passavam e os ônibus passavam. Não estava tão bêbado mas me sentia andando em estopa, com os passos incertos. 


    Atravessei a praça e desci a avenida. Eu morava perto do shopping no apartamento da minha mãe e da minha irmã. Precisava avisar que chegava mais cedo. Onde estavam as minhas chaves? 


    Por um momento, agora me lembro, antes de atravessar pra praça, vi os vultos dos meus amigos... Mas eles não me viram. Aliás, quem me conhecia por ali, naquelas esquinas? 


    Não sei quanto tempo andei. Estranhei o Silvano me acompanhar. Ele disse que também foi morador da região. Até conhecia a minha mãe e minha irmã. É mesmo? Não conseguia me lembrar do Silvano... 


    Era noite e todos aqueles faróis me deixavam entorpecidos. Devia mesmo estar muito bêbado... Parecia que eu flutuava... A dor tinha sumido... Nem sentia minha respiração... 


    Quando chegava ao prédio, vi minha mãe e minha irmã que saíam apressadas. Entraram num táxi e nem me viram. Por que isso? Pareciam preocupadas... O Silvano viu tudo e nada disse. 


    Ele parou diante do prédio e ficou contemplando um apartamento com uma janela acesa. Será que era lá que ele tinha morado? Se não me engano, a dona lá tinha ficado viúva na época da pandemia.... O marido morreu quando a pandemia já estava acabando...


    Por que aquele desconhecido me acompanhava? Seguia mesmo para o mesmo quarteirão e mesmo prédio? Silvano se aproximou da portaria e lá dentro estava o porteiro falando ao telefone. Ninguém entrava e ninguém saía. 


    Tanto eu quanto o Silvano a gente hesitava em entrar. Não sei o porquê. Aliás agora eu sei. Demorou mas a ficha caiu. Quanto tempo ficamos ali, olhando um pra cara do outro? 


    Quando eu vi a minha mãe e a minha irmã estavam saindo de novo! Como assim? Elas tinham voltado e eu não tinha visto? E agora corriam apressadas assim? Parecia um filme se repetindo.... 


    Cismei que precisava seguir as duas desta vez. E fiz um movimento rumo ao táxi mas o carro logo acelerou. Aí Silvano falou que eu me acalmasse. Elas seguiam para a Santa Casa. Uai, mas por que? 


    Quando eu pensei em Santa Casa, logo percebi que estava justamente na Santa Casa. Claro que conhecia o lugar. Minha avó morreu aqui. Minha tia morreu aqui. 


    Então vi a minha mãe e minha irmã seguindo para um corredor. Vi que estavam chorando. Será que alguém da família morreu? Não lembro de alguém internado ali.... 


    Elas entraram numa sala. Funcionários vestidos de branco entravam e saíam. De repente eu percebi que o Silvano estava ao meu lado e ele se vestia de branco! Não havia percebido antes?!


    Então entre corpos deitados sob lençóis brancos, elas se inclinaram para um e aí levantaram o lençol e então é que choraram mais ainda! Ora, na hora eu não entendi....


    Silvano apontou o corpo e, com a cabeça, sinalizou que eu podia me aproximar. Pensando bem, agora, ele agia mesmo como um enfermeiro.


    Então me aproximei. O mais estranho é que nem minha mãe nem minha irmã me notaram ali do outro lado do corpo sob o lençol. E então é que entendi. O homem deitado usava as minhas  roupas. E sua face era a minha. Agora uma face sem vida. 


    Segurei o peito com força. Nada senti. Elas choravam. Abraçadas. Silvano fez um gesto calmo. Vi o homem deitado. Sim. Era isso: meu corpo morto. Ataque cardíaco fulminante. 


    Fiquei ali vendo o corpo. Minha mãe e minha irmã foram embora. Chegou um pessoal da funerária. Seguia ali ao lado do meu corpo. Mas era como ver uma foto de mim mesmo.... Uma lembrança do passado. 


    Silvano era mesmo uma espécie de enfermeiro. Sua calma me contagiava. Em nenhum momento me desesperei. Deixei o corpo seguir. Quando Silvano fez um gesto, eu o acompanhei. 


Jul 24 


LdeM 


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG

BH MG






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sexta-feira, 9 de agosto de 2024

4 + 3 Sonetos by LdeM. Eros & Ágape. 2006. 2024.

 



                                                R. Magritte. Os Amantes. 1928.

                                                Fonte: Internet 


               4 + 3 Sonetos


                  by LdeM


                                 Eros & Ágape


                    2006 & 2024


Soneto dos Amores memoráveis 


Amores formam camadas na mente,

Cada Amor cobrindo o antecedente, 

Mas tal uma camada de poeira,

Que as lembranças sopram de primeira.


Amores se acumulam na memória,

Fixos tal uma decorada história,

E permanecem latentes no peito 

À espera de seus novos eleitos.


Faces lembram faces superpostas,

Perfumes são paixões já expostas, 

Gestos são restos de gestos lembrados, 

Beijos lembram outros beijos negados; 


Promessas de promessas já quebradas,

Dores de Amores que deram em nada.



Mai 06 


LdeM 



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Soneto às Mulheres 


"Diante de uma mulher são só 

garotos"

Leoni 


Mulheres trazem no olhar a presença 

Sutil de um desafio amoroso,

A sedução em gesto silencioso:

Olhares: promessa de recompensa.


Mulheres não conhecem submissão,

Com as suas vontades imperiosas, 

Exigem, com suas poses langorosas, 

A nunca alcançada satisfação.


Mulheres, nossas musas enigmáticas 

Que até já desistimos de entender, 

Por mais que se mostrem damas simpáticas, 


Delas o olhar sempre nos estrangula,

Pois diante do olhar de uma mulher, 

Até o homem genial é uma mula.



Mai 06 

Ago 24 


LdeM 


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Soneto para os Afetos passados 


"A grande dor das cousas que passaram"

Camões 



Ah, a dor dos afetos que perdemos,

A grande ausência tão onipresente,

Da ternura que jamais esquecemos,

Das juras, em carícias tão frementes!


Dormindo e acordando ao teu lado, 

Em teu sono ressonando contigo,

Invejando o teu sonho, encantado 

E curioso, 'Sonhaste comigo?'


Desejos e prazeres jazem mortos, 

Carregamos na mente os funerais, 

Os erros nos caminhos tortos,


Em dores, as torturas sem iguais:

A indagar se amaremos novamente,

Gemendo sob o passado inclemente.



Mai06 


LdeM 





Soneto do Poeta em Terapia 



Eis! Outro soneto a sobreviver 

(Pois ao escrever eu ainda sobrevivo)

Tenho tantas mágoas para esquecer

Quando cheio de pesares eu vivo.


Escrevo por falta d'outro remédio 

(Pois que escrevo como em terapia)

Aqui insone sob os fardos do Tédio 

Vertendo a amargura em poesia.


Escrevo tal um paciente crônico 

(Prostrado num leito, desenganado)

Na solidão, o espírito agônico;


Rabiscando restos de sentimentos 

(Exumados do coração frustrado)

Na lembrança dos saudosos momentos.



Abr 06 

Ago 24 



LdeM 



...





                                                 R. Magritte. O Filho do Homem. 1964.

                                                 Fonte: Internet


Soneto da Graça Eterna 


Soprou em nós o fôlego de Vida 

A Divindade dos Céus e da Terra 

Ao corpo e alma dentro regenera:

Graça da Vida Eterna prometida.


Mãe piedosa geradora da Vida,

Pai justo estende a todos Salvação:

Pois não tem prazer na condenação,

Logo aceitem a Graça oferecida.


Por Amor Deus Excelso se revela 

Em sintonia o Conhecimento:

Ministra Justiça a cada momento!


Plena Misericórdia desvela:

Não vem Dele o mito cruel do inferno!

É Vida: Um Só é o Deus Eterno.



Ago 24 


LdeM 



...



Soneto do Ego inflado 


Ego se acha o centro do universo inteiro, 

Vê o mundo girar ao seu redor!

Ego não em busca de companheiro 

Mas de outro cúmplice menor, 


Outro súdito diante do seu trono, 

Outra serva prostrada em seu altar, 

Outra criatura da qual ser dono,

Outro escravo no qual vai mandar!


Ego se julga eterno possuidor, 

Com a opinião sempre formada, 

Julga como se fosse o Criador!

Ego beija sua fortuna guardada, 


Apegado à sua própria vaidade, 

Incapaz de um gesto de caridade! 



Ago 24 


LdeM 








Soneto do Amor ao próximo 



De que adianta escrever belos poemas,

Se ignoro o próximo com seus problemas?

De que adianta erguer os belos templos,

Se não dedico ao próximo algum tempo?


De que adianta guardar um tesouro 

Sem deixar ao outro nem brilho de ouro?

De que adianta se encher de poder,

Se ignoro que o outro vive a sofrer?


De que adianta se cobrir de vestidos, 

Se deixo o próximo seguir sem sentido?

Fé, crenças, rituais, sem doação?


De que adianta proclamar verdades,

Se tanto dogma não gera caridade?

Antes o amor ao próximo a missão!



Ago 24 


LdeM 



Leonardo de Magalhaens

poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG





segunda-feira, 29 de julho de 2024

Conto. Onde o seu tesouro, aí o seu coração. by LdeM 2024

 

Conto 


Onde o seu tesouro, aí o seu coração 


    Missa de sétimo dia do pai da Patrícia. O Sr. Pacheco era gerente numa empresa de embalagens. Quase um sócio. Pessoa muito respeitada no ramo. Por pouco não foi meu sogro.


    É que quase que a Patrícia foi minha noiva. Minha melhor amiga no colégio e na faculdade, aí rolou um namoro de mais de um ano. Mas aí ela conheceu o Maciel. A Patrícia logo abriu o jogo. Eu fiquei chateado, mas entendi. Voltamos a ser amigos. Até hoje ela continua casada com o Maciel. Ele é advogado. 


    Sou amigo da família. Por isso é que convivi muito com o Sr Pacheco assim como hoje em dia visito a Patrícia e o marido uma vez por mês para um chá e pra falar dos velhos tempos.


    Pois é. Difícil acreditar que o velho Pacheco morreu. Foi de repente. Coisa de derrame, sei lá. Não sou médico. Foi um choque pra família. Ele estava na varanda, entre as plantas e as gaiolas , e, ao voltar para a sala, teve um mal súbito, quase desmaio, e se deitou no sofá. Não se levantou mais.


    A Patrícia me contou como foi. Chorando, se apoiando no marido Maciel. Ela continua linda, preciso confessar. Mesmo com mais de 40 e transtornada pelo sofrimento.


    Lembro muito do Sr. Pacheco, que me levava para verdadeiras tours pela casa em construção. Mostrava a varanda, a garagem, a sala de TV, até a escadinha pro sótão.


    E mostrava os móveis novos e ar-condicionado, além da nova geladeira e uma churrasqueira. Tudo escolhido pelo olhar atento do proprietário, que ainda se aconselhava com decoradores. 


    Sim, pois a decoração era de expert. Cortinas combinavam com móveis que combinavam com o piso. Os banheiros tinham suítes com acesso em imensos guarda-roupas. 


    Tudo o que o Sr. Pacheco ganhava na vida, honesto e prestativo, ele gastava com a casa. Um casarão digno de lord, de gentleman, com dois andares, garagem e sótão. Dois carros do ano. Um dele, e o outro da esposa. Tempos depois, um terceiro carro, o da Patrícia. 


    Sim, posso me lembrar do brilho no olhar, dos gestos de adoração, do orgulho de proprietário, a cada cômodo e descrição. Materiais, madeira, cerâmica, gesso, revestimento, etc 


    Patrícia achava o pai meio exagerado. Eu achava que ele estava certo, ora. Queria uma casa confortável e trabalhava para isso. TV de última geração, DVD, ar-condicionado, tudo de qualidade e elegância. Pena que na estante não tinha um livro, sequer uma agenda ou uma Bíblia. Não se via um único livro na casa toda. 


    E a cada mês e a cada salário e a cada aumento e a cada décimo terceiro, a casa ia aumentando e se avolumando e se adensando de coisas e aparelhos e anexos. Novo telhado e ampliação da garagem e aumento da escadaria. E novo portão eletrônico.


    E toda vez que eu ia lá, ali no quarteirão de cima,  buscar a Patrícia para uma balada, o velho Pacheco me levava pela casa a apresentar, emocionado, as novidades e ampliação e decoração e vantagens. Sofás novos para combinar com cortinas novas. Até uma mesa de sinuca o homem tinha comprado para a sala de TV, que parecia um clube de endinheirados. Num canto, bem suprido, um barzinho com bebidas e amendoim japonês. 


    Pois é. Quem imaginaria que o velho Sr. Pacheco morreria antes de ver a casa pronta? Sim, pois ele planejava trocar as grades da frente e aumentar o muro dos fundos. E trocar novamente o telhado e colocar aqueles painéis solares. O velho não parava mesmo. 


    Morreu o velho Pacheco. Tenho certeza, pois fui ao velório. Lá a Patrícia chorando sem parar. Depois teve a missa de sétimo dia. Família meio católica. Tradicional. Que o Pacheco descanse em paz. 


    Mas posso jurar por estes olhos que leem e por esta mão que escreve que, ontem mesmo, de noitinha, ao passar pelo casarão, ali no quarteirão de cima, vi o Sr. Pacheco lá na varanda, a contemplar sua obra, de braços cruzados, com ar de proprietário.



Jul 24 


LdeM 


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG

BH MG


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quarta-feira, 12 de junho de 2024

Sobre O vinho que sobrou . 2024. Luiz Edmundo Alves. Poesia brasileira.





Sobre O vinho que sobrou [BH, 2024]

Do poeta Luiz Edmundo Alves [BA, 1959-]



    O poeta flâneur se embebeda em suas memórias




Os verdadeiros paraísos são os paraísos que foram perdidos.

Marcel Proust 




    Introdução



    Desde eras imemoriais, a Poesia vem na função de portadora da Sabedoria. A transmissão de geração em geração do Conhecimento da tribo, do clã, da nação, conservado pelos anciãos e sábios para os filhos e netos, numa cerimônia de iniciação, num ritual ou junto de uma fogueira em recital. Em versos cantados para melhor memorização.


    A Poesia era a portadora da Mensagem sendo ela própria uma mensagem / linguagem de iniciação. Cânticos e hinos e salmos traziam os Ensinamentos dos Ancestrais. Assim se perpetuava o Saber numa cultura de oralidade sem livros e pergaminhos.


    O sábio era um poeta e também o poeta tinha Sabedoria. Saber cantar e tocar instrumentos era um dom divinal mais do que um esforço intelectual. Esta ideia de intelectual nem existia. O Poeta era um Mensageiro dos Antepassados e das Divindades.


    Com o passar dos milênios a Escrita foi inventada e aprimorada e os Sábios e os Escribas passaram a reproduzir em Símbolos e Fonemas os Ensinamentos dos Ancestrais e Divindades. Assim surgiram as Escritas Sagradas com seus Livros Sagrados divinamente inspirados. Mas o poeta estava ao lado para decorar e recitar as Palavras da tribo.


    Esta figura do poeta enquanto Arauto e Mensageiro é conservada em várias culturas, principalmente nas orientais. O poeta não é apenas um intelectual ou artista que escreve e recita poemas rimados e metrificados: o Poeta é o Sábio.


    Para nós, pobres ocidentais, é o Poeta não canta mais as Palavras Aladas. O poeta é um burocrata da palavra ou um bom dicionarista. O poeta faz rimas sobre amores perdidos e doenças reais e imaginárias. 


    E separamos o poeta do cantor. E geralmente o cantador faz mais show e dinheiro que o poeta. Assim o letrista pouco aparece nos créditos. O showman ganha o status e a fama. O poeta virou um ghost writer do artista no palco.


    Precisamos resgatar a figura do Poeta enquanto Sábio da tribo. Uma poética que não seja métrica e rima mas sobretudo Mensagem. Não metapoemas afogados em metalinguagem. Já basta de poesia falar de.... Poesia!






    A Obra



    Quando Luiz Edmundo Alves volta de seu plantio e colheita com
O Vinho que sobrou -- bela obra e belo objeto livro -- é com uma bagagem existencial e lírica que vem transmitir a Sabedoria, e de modo a arrebentar leitores e leitoras. 


    É um exercício estilístico de memória e uma profunda voz de autoconhecimento e de confissão, que vem compor sua Figura de Bardo o Poeta o Sábio. Mesmo que, em algum momento ou outro, tenha deslizes sentimentais e mesmo piegas. É um poeta humano, demasiado humano.


    Tem um derramamento de memórias fora de ordem em rodeios em redemoinhos líricos de um Proust ou um Álvaro de Campos. Mil lembranças irrompem no texto e compõem o enredo lírico. Às vezes é mesmo uma prosa lírica ou poema em prosa. Lembra os clássicos de Baudelaire e de Rimbaud. 


    E até cartas imaginárias -- escritas e não enviadas -- estão no corpo poético de O Vinho que sobrou, numa paródia de um gênero missivista ou romance epistolar a la As relações perigosas, Les liaisons dangereuses, de Chordelos de Laclos. 


    Nestas ‘missivas sutis’, líricas e confessionais, o Poeta tenta se apresentar e se justificar perante seus leitores e suas leitoras como se fossem íntimos e íntimas -- os destinatários imaginados em sua lírica. Cada poeta imagina seus leitores. Alguém que receberá e dará significado ao texto que se derrama sem represas e sem censuras. 


    Assim as cartas onde o poeta tenta explicar sua arte poética e o significado e o valor das palavras, desde o estado de dicionário até o construto lírico,


(A palavra coração que agora escrevo não é 

o coração poético, patético, que simboliza afeto,

Amor, ou qualquer sentimento, mas o coração real, 

víscera que bombeia sangue).


p.76 




Já escrevi a palavra afinidade de forma legível,

 mas ficou invisível.


p.72



Removi as palavras daninhas no entorno da palavra adeus.

Me desculpei comigo mesmo por todas as tolices que eu 

disse, por todas as tolices que escrevi.

Escrevi sentimentos platônicos, depois apaguei tudo,

 constrangido. Achei péssimo ser sentimental.


p.83



Toda linguagem tem suas armadilhas, 

o que torna a poesia areia movediça.

Sou movido pela linguagem da geleia geral, 

sou o poeta nu, que confessa. Desencantado.


p.80



     Assim as cartas de Arthur Rimbaud para Paul Demeny, em 1871; e as cartas de Vincent Van Gogh para seu irmão Théo, na década de 1880... O artista se desnudando em busca de simpatia e de compreensão, ciente das dificuldade de definir as sutis distinções do ‘real’ e do ‘ficcional’,


No entanto, seguimos perturbados 

pelo passado, o nosso e o alheio, 

sensíveis que somos.


p.73 


O que é realidade e o que é fantasia.

O que é útil e o que é utensílio.

O que é doença real e o que é 

doença como metáfora.


p.79

     

    Cartas de amor, junto aos poemas de amor, amostras do sentimento, da expansão afetiva, que depois olhamos e julgamos ‘ridículo’, assim todas as missivas guiadas pela emoção logo extravasada. É o olhar posterior que julga, depois que a paixão se acalmou ou se dissipou. Lembramos de célebre poema de Fernando Pessoa, na voz de Álvaro de Campos,


Todas as cartas de amor são 

Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem 

Ridículas.

...

A verdade é que hoje 

As minhas memórias 

Dessas cartas de amor 

É que são 

Ridículas. 








    Poeta moderno e flâneur

 

     À deriva, ou guiado por suas lembranças, o poeta Luiz Edmundo Alves segue como um dândi ou um flâneur pelas ruas belorizontinas em sua ‘geografia sentimental’, como diria um Pedro Nava, ao resgatar sentimentos e fotogramas de sua vida de jovem artista. Solto no mundo, o poeta flâneur se sente em casa em suas perambulações, como bem disse o crítico Walter Benjamin,


A rua se torna a moradia ao flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes.  



     Pequenos flashes poéticos da realidade cotidiana da grande cidade, uma capital centenária, quando o poeta segue, passo a passo, curioso e sedento de sensações, entre ruas no centro de Belo Horizonte, ou na calçada da  Livraria Quixote na Savassi, em cenas de dança no Prado, ou saraus no Palácio das Artes, ou alamedas onde senhores jogam damas:



cientes da finitude próxima 

os velhos jogam dama na alameda, 

o que fazer com suas manhãs?

...

às vezes se juntam apenas para recordar

...

Cenas de bairro 6, p. 56



    A cidade é dissecada e ressignificada em pequenos poemas, ou poemas em prosa, em pequenas cenas, em bairros centrais ou periféricos, em situações as mais banais e existenciais, neste caleidoscópio de lugares e afetos que compõem uma cidade grande que tem status de capital. BH é esta metrópole que vai inchando e se espalhando, em tentáculos, já se unindo visceralmente com as cidades satélites ao redor.


    Em O vinho que sobrou, o real é emoldurado pelo imaginário, e realidade e ficcional se misturam, pois é uma necessidade de narrar a vida e buscar um consolo no desfile de lembranças. O poeta está ciente e confessa que  

"Frequentemente a imaginação dilacera a realidade "

numa realidade ficcional recheada de mil referências à poesia de Ferreira Gullar e às canções da banda Pink Floyd e da banda Eurythmics e ao Clube da Esquina de Milton Nascimento, assim uma colagem ou montagem de elementos sonoros e visuais, melódicos e textuais, num desfile de escola de samba, para euforia e amargura do eu lírico,



Se palavras me vestissem como uma 

fantasia carnavalesca.

Se eu pudesse me sentar na palavra sofá.

Se eu pudesse lamber a palavra limão.

Se eu pudesse suprimir vírgulas e 

ainda assim manter o ritmo.

...

p. 86



Não, não vamos perder nossa identidade nesse 

emaranhado de dados. 

Nossa vida é pop.

Vamos ouvir Sweet Dreams

beber o vinho que sobrou.


p. 89



    A identidade do poeta ou o narrador lírico da vida pós-moderna é também fragmentada e à espera de um sentido total para o aqui-e-agora -- e também o futuro. Como o poeta se vê e como o poeta é visto. Quem pode definir o status do poeta? Ele deve esperar a vez e a voz dos críticos? Pode ‘rotular’ a si mesmo como se estivesse numa campanha publicitária? Ou: Como deve ser a ‘aparência’ de um poeta? Ou ainda: Quanto poeta por aí não seria mais que ‘caricatura de poeta’?


Já sou um personagem velho. 

Já pensei que sexo curasse dor de cabeça.

Já procurei diferentes formas de narrar um átimo.

...

Já fui chamado de lírico,

como se eu fosse um poeta da velha guarda.


Já fui chamado de experimentalista,

como se eu fosse um poeta de vanguarda.


pp. 94-95



penso em usar gravata borboleta para escrever poemas e

visitar poetas, quem sabe eu adote uns suspensórios

também. Gravata borboleta foi a melhor fantasia do dia.


Um búzio que guarda o barulho do mar, 15

p. 30



    Distante de rótulos, modernistas e pós-modernistas, o poeta segue em sua saga de reconstruir o passado ou redescobrir o ‘tempo perdido’. Mas ele vive em dúvidas: A poesia pode comunicar a vida vivida e o momento passado? Não há uma lacuna imensa entre o enunciado e o compreendido? Mais fácil domar as lembranças ou domar a linguagem? O que sabemos das potências e dos limites da linguagem?


Se eu pudesse devorar a palavra desejo,

mastigar suas consoantes e antes sentir 

demoradamente cada uma delas 

e depois deixar suas vogais sobre esta página 

e tudo se transformasse, não em poema, mas 

em uma fantasia com a essência do que me 

me inquieta agora, eu abraçaria o desejo e beberia 

todo o vinho que sobrou.


p. 91



com a linguagem do beijo de

língua ela escreve e apaga o

poema que a paixão inspirou.

gosto de indagar:

a língua reteve algum sabor?

da paixão, o que os espelhos guardaram?

lágrimas & revolta, ou alívio?


Um búzio que guarda o barulho do mar, 11

p. 26




    Embebedado com suas lembranças

 

     As memórias estão fora de controle e surgem quando querem. Não temos as lembranças: são as lembranças que nos possuem. De repente estamos de volta ao colégio, ou ao primeiro amor, ou ao dia do diploma, ou à festa de casamento, ou uma certa tarde no clube ou no cinema. As memórias não seguem protocolos ou planilhas ou outras formas burocráticas, muito menos calendários,



Nossa memória não nos apresenta habitualmente as recordações na ordem cronológica. 

Marcel Proust 



A memória é, entre todas, a faculdade épica por excelência. Só devido a uma memória alargada a épica pode apropriar se , por um lado, do desenrolar das coisas e, por outro, aceitar o seu desaparecimento, o poder da morte. 

Walter Benjamim 

In O contador de histórias, p. 154 



    Em O vinho que sobrou, Luiz Edmundo Alves vai escrevendo e se analisando, numa autoanálise que se processa ao resgatar memórias e vivenciar os poemas, que se nutrem de tantos fardos de alegrias e amarguras, em suas tentativas de ser aceito e entrelaçar afetos e amizades,  



Já censurei umas coisas ousadas que escrevi.

Já fiz a coisa certa pensando que fazia errado.

p.96


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Já quis ser amigo de um poeta, não funcionou.

Já namorei uma poeta, a poesia nos afastou.

...

Já fui demasiado irônico, e bizarro.

Já achei muito ruim um livro premiado.

Já pensei que fosse por inveja.

Já pensei que estivesse certo.


p. 97




    Vivendo de lembranças e geografia sentimental, o poeta segue sua vida de labuta e lavoura. Tenta domar sua linguagem enquanto medita sobre o que seria a vida. O que passou e o que ainda virá. Depois vai rabiscar uns papéis em busca de uma estética (ou de um alívio?) que seja criação (e recreação) no cotidiano árido. Assim, Luiz Edmundo Alves, para o nosso bem, não segue os doutos conselhos do poeta de Minas pedregosa, Carlos Drummond de Andrade, 


Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

...

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia .


Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

...

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

...

Não forces o poema a desprender -se do limbo.

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Procura da poesia. In : A rosa do povo [1945]




    Consciente, o poeta é humilde para reconhecer que a doma da linguagem é tão difícil quanto a doma da memória, que não avisa quando vem. Pode ser uma canção ou uma fotografia, ou pode ser uma madeleine mergulhada num chá de tília. Não avisa e toma conta quando aparece. É aquela visita chata e inoportuna que não vai embora. O que fazer então? Aceitar a ‘possessão’ da memória e fazer algo disso: um romance? Uma crônica? Um poema em prosa? À vontade… desde que faça algo! Da lembrança para a imaginação para a linguagem...


O poema é um pequeno e frágil 

gesto de imaginação.

Tudo aqui escrito foi

puro gosto pela imaginação,

Puro desejo de linguagem.


Posfácio do autor 

p.101





        Poeta. Leitor. Contador de histórias.



    O Autor é um Leitor. Um ser intelectual que vive entre os livros e as muitas leituras. O universo literário do poeta só se expande e as referências e os intertextos se acumulam e se amontoam e se erguem diante do homem e artista que busca sua própria expressão.


    É que o Poeta precisa aprender a comer e digerir bem os livros se quiser fazer sua própria nutrição balanceada. Ter uma dieta de antropófago modernista e tropicalista. Evitar indigestões. O que fazer com tanto livro? Onde enxertar tanta influência e identificação? Como fazer nossa obra sem ecoar a dos outros? Ou o poeta não é mais que um fingidor… e um plagiador?


as muitas noites que li Proust, Camus,

Drummond, Clarice, Ana, Anne, Djami, Max, e

depois borrei meus escritos com suor ou

com lágrimas.


Um búzio que guarda o barulho do mar, 13

p. 28



    Enquanto Leitor, o Poeta adentra obras de outras e outros. Imagina se seria aceito pelos autores. Seria que Drummond responderia suas missivas? Será que Gullar compartilharia algum poema saído do forno? Será que Clarice seria sua leitora? Mas o Poeta é um leitor voraz e reprocessador de leituras: conta suas histórias como se fossem de outro. E conta histórias de outros como se fossem suas.


    O Poeta enquanto Leitor avalia as obras alheias e quase um crítico aponta suas próprias obras. Lembramos de Walter Benjamin, em seu profundo ensaio sobre o narrador e a contação de histórias, sobre o papel do leitor e do crítico,


A leitura como uma das centenas de formas possíveis de acesso ao livro. ... Do mesmo modo, o verdadeiro crítico tem muitas vezes o seu sonho desperto de um livro, antes mesmo de conhecê-lo. O contador de histórias, p. 119 




    Aquele que escreve pode recordar-se do vivido e do que foi lido. Aprendeu muito com suas vivências e é capaz de confessar e se autocriticar. Aprofunda-se em seu passado sempre vivo e de lá pode extrair as pérolas mais valiosas. Deve este poeta [ou narrador] saber como compartilhar suas histórias de vida não por vaidade ou soberba ou por ressentimento, mas como ensinamento para suas leitoras e seus leitores. O que o poeta aprendeu consigo mesmo? De suas peregrinações e aprendizados o que tem para nos ensinar?



O contador de histórias pertence à estirpe dos mestres e dos sábios. Tem um conselho a dar -- não como provérbio, apenas para alguns, mas como sábio, para muitos. Porque pode recorrer a toda uma vida -- (...) A sua vocação é a sua vida, a sua dignidade a de poder contar toda a sua vida. 

Walter Benjamim, O contador de histórias, p. 166






    Conclusão



    Ler O vinho que sobrou de Luiz Edmundo Alves é um exercício de leitura e solidariedade. Às vezes conseguimos rir com o poeta e também ter simpatia e até compaixão. É assim tal qual uma jornada de um Marcel Proust em seu ‘tempo perdido’: podemos ler e reler e sempre vamos chorar no final. O tempo passou e não pode ser redescoberto nem recuperado. Então é viver o agora -- antes que se torne um ontem. Aproveitar a vida é viver o aqui e agora.


    Ao voltar ao vinho que sobrou, o poeta sorve as gotas mais preciosas: ele alcança a Sabedoria. Seguiu sua jornada e combateu o bom combate e alcançou seu troféu. Não pode mais ser um egocêntrico ou egoísta: deve agora compartilhar para os contemporâneos e para as novas gerações. Sua Poesia passa a ser um Testemunho. Ou uma autobiografia poética: consciente, sentimental, irônica, confessional, piegas, iconoclasta.


    Assim, na condição de poeta, em O vinho que sobrou, Luiz Edmundo Alves fala de si, em voltas ao redor do próprio umbigo, mas, por fim, desvela a nossa condição humana, demasiada humana, de efêmeros mortais, saudosos do passado e ansiosos do futuro. É o que precisamos aprender. A verdadeira Poesia ensina. E nós (que temos olhos para ver, e ouvidos para ouvir?) podemos aprender.




    Jun24



Leonardo de Magalhaens


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG

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Referências



ALVES, Luiz Edmundo. O vinho que sobrou. Belo Horizonte: Quixote+DO, 2024.


ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 1945.


BAUDELAIRE, Charles. O Spleen de Paris. Trad. Alessandra Zir. L&PM, 2016.


BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.


_____________ . Linguagem, tradução, Literatura (filosofia, teoria e crítica) Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.


BERMAN, Marshall. Baudelaire: o modernismo nas ruas. In: Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


LACLOS, Chordelos de. Ligações perigosas. Les liaisons dangereuses. Trad. Fernando Cacciatore de Garcia. Porto Alegre: L&PM, 2008. 


PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos: obra poética IV. Apresentação Jane Tutikian. Porto Alegre: L&PM, 2019. 


PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Trad. Mário Quintana. Manuel Bandeira. Carlos Drummond de Andrade. Globo, 1993.


RIMBAUD, Arthur. Uma Estadia no Inferno. Poemas escolhidos. A carta do vidente. Trad. Daniel Fresnot. São Paulo: Martin Claret, 2002.


VAN GOGH, Vincent. Cartas a Théo. Trad. Pierre Ruprecht. Porto Alegre, L&PM, 2021.









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