segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Uma festa inesquecível. Conto by LdeM. BH, 2024.

 





Conto


    Uma festa inesquecível 


    1


    -- Bruno, faz favor de atender o interfone, meu filho! 


    Era a minha mãe gritando da cozinha. Ideia dela de comemorar aqui mesmo o niver de 45 anos. Uma hora dentro da cozinha com a tia Bruna (daí vem o meu nome...) e a prima Melissa, correndo entre a pia, o forno e a geladeira. Melhor ter pedido umas pizzas. 


    Fui atender. Era a Luma, a amiga da minha mãe, também professora, lá na escola municipal. Ela chegou com o noivo, que chamam de Messias, e o irmão dele, o Lemos, da empresa Lemos & Filhos. 


    Gente muito educada e saudável. Descobri que o Messias é personal trainer, com academia na Pampulha. Não entrou para os negócios da família Lemos, percebe-se. 


    Papai e o Xavier (meu tio, marido da Bruna e pai da Melissa) deixaram o churrasco por um minuto e vieram fazer reverências aos recém-chegados.


    Parece que até abaixaram o volume do som. Papai é daqueles fãs de MPB e sempre ouvindo Caetano e Gil quando pode.


    Alguém me perguntou se eu estudava engenharia. Claro que me confundiam com papai, que tem trinta anos de carreira na construção de shoppings por aí. Eu explico, tranquilamente, que sou do Direito, que tem muito corrupto por aí precisando de bons advogados. 


    Alguém riu. Não lembro se o Messias ou o irmão dele, o Lemos. Estavam todos juntos, suados e ofegantes, cuidando do churrasco. Eu fiquei na varanda e ouvia tanto pedaços de conversa da cozinha, quanto fragmentos ao redor da churrasqueira. 


    As mulheres falavam sobre preços aumentando, ou compras para o Natal e Réveillon, enquanto abriam e fechavam o forno, ou guardavam as saladas na geladeira. 



    Nisso chegou a vizinha, a Dona Vanda. Sem o marido e o filho. Aproveitaram o feriado para uma pescaria. Com mais pratos e dois refrigerantes, a vizinha entrou e não demorou em se misturar nos afazeres da cozinha.


    Papai trocou a soundtrack. Alguém pediu bossa nova. Ok. Mas o tom da conversa continuava o mesmo. Uma mistura de religião e política. Tudo porque alguém comentou sobre as eleições nos States e outro sobre um cidadão perturbado que jogou bombas no Supremo Tribunal em Brasília. 


    Parecia que papai e o Messias faziam uma dupla de esquerda. Papai um católico que foi líder estudantil, e hoje é do sindicato. E o Messias que é da geração saúde, um cara 'super-mente-aberta', que vota nos progressistas. 


    O Xavier, o meu tio, todos já sabemos que é daqueles evangélicos da teologia da prosperidade que vota com a direita e apoia os judeus contra os palestinos terroristas. 


    Logo o Lemos começou a apoiar o Xavier, numa comunhão dos empresários, ou justos empreendedores, na cruzada contra o Estado inflado e gastador. Interessante que o Lemos, fui descobrindo, é filantropo, conhecido por doações aos lares espíritas. O resto da família só pensava em ganhar dinheiro. Exceção ali é o Messias, um jovem anarquista, agora dono de academia. 


    Na cozinha as mulheres falavam de contas pra pagar e as dívidas futuras. Haja cartão de crédito! Tia Bruna é daquelas que gastam mesmo. O marido empresário que pague as contas. Minha tia idolatra o marido, símbolo da prosperidade, e não hesitou em se batizar na igreja dos evangélicos. Ela que sempre acompanhava mamãe quando jovens seguiam para as missas. Mamãe nunca foi devota, mas gosta de ler a Bíblia. Papai nem isso. Ele continua católico por inércia social -- "Porque ainda não tivemos justiça social", ele diz. 


    Papai insiste que não conhece evangélicos de esquerda, que todos ficam aí comemorando a eleição do Agent Orange lá pra White House.


    -- Um cidadão que deveria estar preso! O que acontece nos States? O cara vira Presidente! 


    Aí titio Xavier vai lembrar que a culpa é das esquerdas, com esta doutrinação woke, e sem preocupar com os trabalhadores, só nessa de identitarismo e tal. Então o Lemos começou a fazer um discurso do atrasado das esquerdas ditas progressistas que nem entendem de redes sociais, o verdadeiro termômetro das campanhas políticas. 


    O Lemos falando até deixava o irmão Messias sem fôlego. Até parecia que fazia tudo isso mais para irritar o irmão do que para apoiar o tio Xavier. 


    Alguma treta aqueles irmãos tinham no armário. Mas a discussão não seguiu porque as mulheres chegaram com pratos e talheres. Tia Bruna trazia as saladas e um vinho. A Melissa correndo com as travessas de empadas e coxinhas. Mamãe seguia atrás com a panela de arroz temperado. 


    Eu olhava pra Melissa mas ela me ignorando. Novo corte de cabelo, batom brilhando, unhas com efeitos. Lembro que duas vezes puxei assunto. Sabia que ela estava nos ENEM da vida.... Psicologia ou nutrição, algo assim. Mas ela nem queria saber de estudos... É daquelas que só estudam pra passar. Acho que sou mesmo o único nerd da família. Só porque eu leio os diálogos do Platão....


    Mas se Melissa nem olhou pra mim, não disfarçava os olhares para o Lemos. Logo vi que a coisa ia desandar. O Lemos falava e falava para conquistar a confiança do tio Xavier, e nisso, mais cedo ou mais tarde, ele acabaria duelando com o próprio irmão. 


    O Messias até parece um messias daqueles de filme religioso. Tem barba e cabelo longo preso. É moreno e tem fala mansa. Mas não demora muito e o homem se exalta. Por exemplo, ele acha que religião é perda de tempo. Religião é esse lance de assistência e tal. 


    Dar esmolas? O povo continua aí pedindo esmola! Filantropos não mudam nada ... Cadê a justiça social? O povo precisa se organizar.... Deixar de viver das migalhas...


    O discurso leninista ali não seria aceito, logo se viu. A professora Luma, até então a mais calada, foi falar pro noivo pra ele não falar de política e tal. Messias perdeu a pose messiânica e fez cara feia para a noiva. Será que só eu percebi? 




    2



    A sorte foi que dona Vanda começou a arrumar as coisas na mesa e chamar o pessoal para se servir logo, antes que tudo esfriasse, ou chegasse mais chuva. "Não viram que choveu tanto aqui que a lagoa do Nado se rompeu e vazou toda?!"


    Aí começaram a falar de BH debaixo daquela água toda. Vilarinho inundada, carros e pessoas arrastados. Pânico geral. E daí a falar mal dos políticos de BH, que era uma vergonha a esquerda apoiar candidato continuísta de direita pra não votar em candidato de extrema direita. 


    "Por que não se uniram logo numa candidatura forte de esquerda?" Era o meu pai falando. Mas o tio Xavier entrou defendendo a 'mudança' que seria a eleição do candidato da direita, da verdadeira direita, que isso de 'extrema direita' era propaganda esquerdista...


    E Dona Vanda se preocupando em servir todo mundo, pois mamãe já ficava nervosa com tanta falação, aqui ali era uma reunião de família, mas parecia mais um barril de pólvora. 


    Para evitar discutir com o titio Xavier, papai logo foi virar a carne e cortar mais porções de churrasco. A fumaça tomou conta da varanda. "Parecia gelo seco em show de rock." O comentário foi da prima Melissa e gerou risada geral. 


    Todo mundo comendo e ouvindo Marisa Monte. Se via que o tio Xavier e a professora Luma preferiam um gospel. O Messias perguntou se podia tocar um Tom Zé. Papai se levantou e buscou o controle do som. 


    Eu pouco me ligava pra trilha sonora A ou B. Observava os olhares da Melissa para o Lemos. Vimos logo que o homem é dos veganos. Encheu o prato de salada. Comeu a farofa, mas nem mexeu na carne. A tia Bruna também fazia o tipo vegano e parece que a Melissa estava seguindo a dieta da titia. Quanto mais salada aparecia no prato do empresário Lemos, mais transbordava no prato da Melissa. Estranho fenômeno. 


    Tio Xavier fazia tudo para agradar ao Lemos e o Lemos fazia de tudo para ter a confiança do tio. Melissa, entre o pai e mamãe, correndo os olhos de um para o outro. 


    O Messias trocava amabilidades com papai, que servia mais carne. O personal trainer gosta de carne bem passada. Nisso era acompanhado pela noiva, a professora Luma. A colega de mamãe era a pessoa mais calma e serena ali. É de família de religiosos (testemunhas de Jeová, segundo me disse mamãe, depois) e seguia em tudo com muita fé e prudência. Algum dia poderia ser diretora da escola. Por enquanto é a professora de matemática. 


    Mamãe seguia outra carreira, cuidava das aulas de português e de redação e de inglês. Não tinha a cabeça de Exatas, cheia de números, aos moldes do marido engenheiro e da colega. 






    3



    Depois da farta ceia e de um início de discussão sobre se a República nasceu de um golpe militar, "o primeiro de muitos que vieram" , segundo o meu pai dizia,  a dona Vanda teve uma inspiração de pedir logo o sorvete de chocolate e flocos, antes do bolo de aniversário e do happy birthday for you... 


    "Democracia ainda não daria certo no Brasil porque aqui o povo não sabe votar", papai dizia, experimentando o sorvete, e olhando para o tio Xavier que já preparava a resposta, "O povo vai aprendendo, veja aí os protestos de 2013, o povo quer política decente e Estado mínimo...", e o Messias olhava perplexo o homem, que se dizia conservador, aplaudindo protestos populares.... "Era agora o pessoal de direita que apostava no vox populi.... O povo sabia votar? Votou num populista que virou genocida durante a terrível pandemia.... " 


    Ainda bem que a discussão não seguiu mais. A noiva tocou de leve no braço do noivo exaltado e fez leve carícia de "acalma os nervos, meu filho ", sei como é.


    Então o sorvete foi recolhido pela dona Vanda e pela Melissa enquanto os homens elogiavam o magnífico jantar. De barriga cheia o bom humor voltava a reinar. 


    Depois de tocar umas músicas da Adele, que foi pedido de Melissa, todo mundo se juntou na varanda em torno do bolo de aniversário. Dois andares e todo enfeitado de pétalas lilases. Duas velas rosa chock: 4 e 5… Pediram discurso e mamãe agradeceu e agradeceu. Que nossa família seguia unida ( mamãe abraçou a tia Bruna) apesar de toda política que assolava o país etc. E deu o primeiro pedaço de bolo para papai, que, surpreendido, quase engasgou. (Também eu pensei que o bolo seria para a tia Bruna....) 


    Papai ficou calmo depois da gentileza de mamãe. E a discussão foi ficando entre os irmãos Lemos, com o forte apoio do tio Xavier ao empresário Lemos. O personal trainer lançava olhares de socorro ao meu pai, mas ele agora só dava atenção para mamãe. 


    Todos viram que os irmãos estavam exaltados, mas ninguém imaginou que daria treta e soco na cara. Aliás ninguém viu a briga. Só percebemos, um tempo depois a calma professora Luma entrar na sala com os olhos chorosos, a pedir desculpas pelo noivo, e aquela confusão com o irmão. Eu não entendi. E onde estava Melissa? Depois do happy birthday e o bolo de dois andares, cadê a Melissa? 


    Lembro que fui ao banheiro, depois olhei mensagens no zap, depois mandei fotos nas redes sociais (é, realmente, preciso sair das redes sociais...) e só voltei a me materializar ali na hora que acabava a novela global das nove. 


    Pouco depois da vinheta do Globo Repórter, que falava de animais e vida silvestre, é que entrou a professora Luma a pedir desculpas, e morrendo de vergonha. Precisava ir embora. O noivo dela estava de treta ( ela não usou estes termos...) com o irmão. 


    Depois o tio Xavier entrou brigando com a Melissa, que nem olhou pra ninguém e foi buscar a bolsa dela lá no quarto dos hóspedes. 


    Aí foi a tia Bruna conversar com a professora Luma. As mulheres falavam baixo, por isso não entendi. E ninguém me explicou. O que explicava tudo era a cara borrada da Melissa, minha prima. 


    Os irmãos não tinham brigado por causa de política? Por causa do Trump? Por causa dos eleitores de BH? Por causa da injustiça social? Ou por culpa do globalismo? 


    Não tinha testemunha, era a palavra de um irmão contra a do outro. Parece que a gota d'água foi o Messias surpreender, lá na garagem, o empresário Lemos roubando um beijo da minha prima vestibulanda. E Melissa não confirma, nem nega.



Nov 24




LdeM


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG


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terça-feira, 12 de novembro de 2024

mais 4 sonetos [do fundo do baú] by LdeM

 




+ 4 sonetos by LdeM 


Sonetos 


Soneto da Potência cósmica 


Cosmos, eis a Dádiva da Potência 

Em volteios mil -- de engrenagem --

De Estrelas em fulgurante moagem 

Diante do assombro das Ciências.


Forjar infindo: Fluxos se sucedem, 

Brotando em Nébulas os novos Astros 

De pó etéreo deixando rastros -- 

As Esferas em órbitas se medem; 


Em rochosos Globos Vida semeiam:

No ar agitam-se viçosos enxames, 

Nos bicos pólen colhem de estames 


Sobre águas procelosas volteiam -- 

De lagos, os mares plenos de Vida 

A uma constante Busca convida.



Mar 03 


LdeM 








... 



Soneto para a Conquista de Si mesmo 


Ocupe o teu íntimo território!

Em conquistas viver na adversidade

Acima dos prazeres ilusórios 

Construindo teu ser e realidade.


Que seja tua morada tua coragem 

Para o sobreviver já compulsório, 

Merecendo, em vida, a homenagem 

Que sobreviva ao fenecer inglório.


Dos porcos as pérolas afastadas, 

Para os Eleitos as canções entoadas, 

Em paz com a tormenta interior, 


Onde o Audaz já transpassa os pesadelos 

E olhares frios não podem vencê-lo 

Quando a si mesmo é superior.



Nov 04 



LdeM 



...









Soneto para o Expresso noturno 


Arrastando os vagões dentro da noite 

Vem a locomotiva dentre a bruma, 

A névoa liquefeita tal espuma, 

Onde um clamor golpeia tal açoite.


Neblina, manto espesso após a chuva 

Distorcendo os faróis tão apressados, 

Nas ruas os semblantes estressados, 

Enquanto até o comboio se turva.


A sirene, o apitar tão clamoroso 

Rasga aflito um denso néon brumoso 

Na palidez dos arbustos cobertos; 


Assustando tais trêmulos passantes 

(Que aqui calados se perderam antes) 

Quando alguém se joga de braços abertos.


Abr 05 


LdeM 



...



Soneto do Ato final 



Para onde seguem os pobres atores 

Depois que a encenação aqui findou?

Para onde silenciam os oradores 

Depois que a conferência terminou?


Para onde vão os cruéis promotores 

Depois que este tribunal já fechou?

Para onde agora vão os remadores 

Depois que o navio da vida afundou?


Para onde vai afinal todo o drama 

Quando já se esvazia sem ensaios?

Para onde a açucarada e velha trama 

Quando é finda a cena do desmaio? 


Para onde vão os sonhos ao despertar 

Depois que à vida a morte apagar?



Dez 04


LdeM







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segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Mais 6 sonetos [de outrora...] by LdeM

 



                                           imagem: R. Magritte [fonte: internet]



                                          6 Sonetos de outrora... 



Soneto para o Desassossego n'Alma 


E quem ousou ao proclamar Verdades 

Num teatro de lamentos encenados 

Num palco de sorrisos maquilados 

Sob o golpear da Necessidade?


E quem ousou a criação doentia 

Num leito de impurezas resguardado 

Num abismo de horrores ansiado 

Sob esta luz mortiça que angustia?


Ao atravessar os risos orquestrados 

Na multidão de olhares tão perdidos 

Quem tem a Paz realmente encontrado?


A flutuar no mar das Ilusões 

Numa rede de gestos sem sentido 

Quem encontra repouso sem aflições? 



Out 24 


(Versão original: Ago 05)


LdeM 



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Soneto do Artista do Ideal 



Ferido em Asperezas cotidianas 

A rastejar por entre os pedregulhos, 

Insone após Melodias insanas 

Somente pude guardar meu Orgulho.


Entristecido ante a hostilidade 

A xingar ofensas ensandecidas, 

Meio aos Pesadelos da cidade 

Pois sofri cicatrizes e feridas. 


A tropeçar nos desertos do Real 

E perdido em busca das outras Musas, 

Sempre fascinado ante um Ideal, 


Afundado nas doutrinas difusas, 

O ansioso escavador do Infinito, 

Sou este outro Poeta entre os malditos.



Out 24 


(Versão original: Out 05)



LdeM 


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Soneto da Realidade Ilusória 


Formidável inchaço da Memória 

A soterrar o espaço metafísico 

No acúmulo de toda esta escória 

De um atormentado espírito tisico!

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Tal lamentável e medonha história 

A transpassar o Pesadelo químico, 

Até o túmulo tão contraditória, 

A narrativa ácida de um cínico! 

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A propor perspectivas execráveis, 

Em torvelinos mentais infindáveis, 

Enreda a Realidade ilusória, 

.

A deixar os olhares impassíveis 

No trafegar contínuo de insensíveis 

Nesta existência inerte e compulsória!



Out 24 


(Primeira versão: nov 05)


LdeM 



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                                             imagem: R. Magritte [fonte: internet]



Soneto gótico na Noite de chuva 


Miríades de gotas nas vidraças 

rastejando silentes sem urgência 

quando a chuva agasalha toda a praça 

 com gentil arrogância e sem ciência.


Gárgulas gorgorejam ameaças 

vertendo de sangue a rubra aparência 

quando os olhos divisam as desgraças 

na doença crônica da Consciência.


Clamores já gotejam noutras calhas, 

a prenderem lembranças em suas malhas 

 os ruídos úmidos das gotículas, 


deslizam nos porões da mente falha, 

adentram a frieza da mortalha, 

enquanto a alma insiste em dores ridículas.



Out 24 


(Primeira versão: dez 05)


LdeM 



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                                 imagem: Os Amantes [R. Magritte] [fonte: internet]



Soneto 


Soneto da Dúvida Cruel 


Tecendo teias em nossos corações 

Na Angústia constante, sem repousar, 

Em Inquietares de um Ansiar 

Cruel em sólidas Solidões.


Insatisfeita de nosso Amar, 

Na busca por real compreensão, 

Vive, Noites em claro sem cessar, 

O Desconforto e a profunda Aflição.


Entregue às cartas com Devaneios, 

Sofre as Desilusões do mundo real, 

Pedindo ajuda por todos os meios 

Num Delírio que é quase fatal.


Suas perdas coleciona em seus versos, 

A Dúvida cruel em triste universo.



Out 24 


(Primeira versão: abr 06)


LdeM 


...



Soneto da Existência Malograda 



Jogado na insustentabilidade 

Da finita Existência malograda 

Queimando fosfato com malfadadas 

Questões da quimérica Eternidade.


Geme sob o fardo das Fatalidades 

Da condição áspera e ingrata 

Em indignidades a Náusea farta 

Na prepotência da frágil Vontade.


Sofrendo impasses da vã Metafísica 

Nas ponderações da tortura física, 

Eleva hinos em formal Devoção;


Insiste em preces e grotesca Mímica:

Pobre refém das Leis da bioquímica 

Que apodrece esperando a Redenção.



Out 24 


(Primeira versão: abr 06)



LdeM 


Leonardo de Magalhaens 

    poeta, contista, crítico literário

    Bacharel em Letras FALE / UFMG 

    Canal Youtube Literatura Agora!


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terça-feira, 24 de setembro de 2024

Conto. Fim de expediente. No bar. by LdeM

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Conto


Fim de expediente. No bar.



    Ontem conheci o Silvano. No bar mesmo. Não lembro de ter visto o cara por lá antes. Mas parece que o Silvano já me conhecia. Um cara bem tranquilo, bem zen, fala pouco, assim sempre calmo. 


    Eu estava no bar desde o fim do expediente na gráfica. Vi o Jailson na praça e seguimos pro boteco. Lá tem uma mesa no segundo pavimento que a gente sempre 'aluga' até o bar fechar. 


    Eu continuava com umas dores no peito e que não passavam. Eu até me acostumava. Devia era procurar um consultório ou posto de saúde. A gráfica não pagava plano de saúde para funcionários. O pessoal do escritório é que tinha grana pra pagar por conta própria.


    Acontece que a gente só ficava bebendo, ouvindo um Lulu Santos ou Adriana Calcanhotto, e contemplando a paisagem: as belas que saíam do serviço ou seguiam para a happy hour


    O tempo passava e já era de noite. O primo do Jailson, o Ribamar, chegou e ficou tagarelando sobre olimpíada em Paris. Eu lembrei da Mulher Maravilha correndo numa maratona....


    A dor no peito ora ia ora voltava. Realmente eu estava precisando fazer uns exames. Melissa bem que dizia. É nessas horas que eu me arrependia de ter deixado a Melissa. É que a gente brigava muito... Ela vivia me chamando de bebum e outros deboches. Teve uma vez que eu desci a mão. Foi a briga final. Eu fui embora. 


    O Jailson queria ver as Hildas na descida da rua da Bahia.... O Ribamar parece que esperava alguma conhecida aparecer ali. Eu fiquei sentado bebendo e ouvindo o Milton Nascimento. Amores perdidos etc. Pelo menos eu tinha meus amigos.



    De repente, eu estava no chão. Acho que tinha caído da cadeira. Será que cochilei? Ou eu estava levantando para ir ao banheiro?


    Lembro de ouvir as vozes do Jailson e do Ribamar me chamando. Então eu vi uma mão e alguém ao meu lado. O Silvano. Pessoa simpática que me ajudou a levantar. 


    Onde os meus amigos? Devem ter se preocupado e descido pra chamar alguém, tipo o dono do bar... Só o Silvano ali tentava me acalmar . Que eu me sentasse... Se tinha melhorado a dor no peito... Como ele sabia?


    Acho que ele deve ter percebido quando eu caí... Devia estar apertando o peito. Sim, uma punhalada no coração! Saudades de Melissa? Eu não era de ficar sentimental assim...


    Silvano sentou-se na cadeira ao lado na mesa, onde antes estava o Jailson. Ele falou pouco e muito calmo. Se a dor tinha passado que eu me levantasse, pois andar me faria bem. 


    Assim descemos a escada e saímos na rua. Quem passava nem me olhava na cara. Também não me lembrava do pessoal. Vi o dono do bar, o Jonathan, fiz um gesto, mas ele não me viu. Também tanto freguês nesta hora...


    Saindo na rua andei meio desorientado. O Silvano explicou que meus amigos logo voltariam. Eu queria esperar? Disse que sabia ir pra casa. Não adiantava esperar carona. Todo mundo bêbado só voltava de táxi ou Uber. 


    Estranho que não vi qualquer conhecido. As pessoas passavam e os ônibus passavam. Não estava tão bêbado mas me sentia andando em estopa, com os passos incertos. 


    Atravessei a praça e desci a avenida. Eu morava perto do shopping no apartamento da minha mãe e da minha irmã. Precisava avisar que chegava mais cedo. Onde estavam as minhas chaves? 


    Por um momento, agora me lembro, antes de atravessar pra praça, vi os vultos dos meus amigos... Mas eles não me viram. Aliás, quem me conhecia por ali, naquelas esquinas? 


    Não sei quanto tempo andei. Estranhei o Silvano me acompanhar. Ele disse que também foi morador da região. Até conhecia a minha mãe e minha irmã. É mesmo? Não conseguia me lembrar do Silvano... 


    Era noite e todos aqueles faróis me deixavam entorpecidos. Devia mesmo estar muito bêbado... Parecia que eu flutuava... A dor tinha sumido... Nem sentia minha respiração... 


    Quando chegava ao prédio, vi minha mãe e minha irmã que saíam apressadas. Entraram num táxi e nem me viram. Por que isso? Pareciam preocupadas... O Silvano viu tudo e nada disse. 


    Ele parou diante do prédio e ficou contemplando um apartamento com uma janela acesa. Será que era lá que ele tinha morado? Se não me engano, a dona lá tinha ficado viúva na época da pandemia.... O marido morreu quando a pandemia já estava acabando...


    Por que aquele desconhecido me acompanhava? Seguia mesmo para o mesmo quarteirão e mesmo prédio? Silvano se aproximou da portaria e lá dentro estava o porteiro falando ao telefone. Ninguém entrava e ninguém saía. 


    Tanto eu quanto o Silvano a gente hesitava em entrar. Não sei o porquê. Aliás agora eu sei. Demorou mas a ficha caiu. Quanto tempo ficamos ali, olhando um pra cara do outro? 


    Quando eu vi a minha mãe e a minha irmã estavam saindo de novo! Como assim? Elas tinham voltado e eu não tinha visto? E agora corriam apressadas assim? Parecia um filme se repetindo.... 


    Cismei que precisava seguir as duas desta vez. E fiz um movimento rumo ao táxi mas o carro logo acelerou. Aí Silvano falou que eu me acalmasse. Elas seguiam para a Santa Casa. Uai, mas por que? 


    Quando eu pensei em Santa Casa, logo percebi que estava justamente na Santa Casa. Claro que conhecia o lugar. Minha avó morreu aqui. Minha tia morreu aqui. 


    Então vi a minha mãe e minha irmã seguindo para um corredor. Vi que estavam chorando. Será que alguém da família morreu? Não lembro de alguém internado ali.... 


    Elas entraram numa sala. Funcionários vestidos de branco entravam e saíam. De repente eu percebi que o Silvano estava ao meu lado e ele se vestia de branco! Não havia percebido antes?!


    Então entre corpos deitados sob lençóis brancos, elas se inclinaram para um e aí levantaram o lençol e então é que choraram mais ainda! Ora, na hora eu não entendi....


    Silvano apontou o corpo e, com a cabeça, sinalizou que eu podia me aproximar. Pensando bem, agora, ele agia mesmo como um enfermeiro.


    Então me aproximei. O mais estranho é que nem minha mãe nem minha irmã me notaram ali do outro lado do corpo sob o lençol. E então é que entendi. O homem deitado usava as minhas  roupas. E sua face era a minha. Agora uma face sem vida. 


    Segurei o peito com força. Nada senti. Elas choravam. Abraçadas. Silvano fez um gesto calmo. Vi o homem deitado. Sim. Era isso: meu corpo morto. Ataque cardíaco fulminante. 


    Fiquei ali vendo o corpo. Minha mãe e minha irmã foram embora. Chegou um pessoal da funerária. Seguia ali ao lado do meu corpo. Mas era como ver uma foto de mim mesmo.... Uma lembrança do passado. 


    Silvano era mesmo uma espécie de enfermeiro. Sua calma me contagiava. Em nenhum momento me desesperei. Deixei o corpo seguir. Quando Silvano fez um gesto, eu o acompanhei. 


Jul 24 


LdeM 


poeta, contista, crítico literário

Bacharel em Letras FALE / UFMG

BH MG






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