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Só não vá colocar a mãe no meio!
I
Quem guarda as lembranças da família além das mulheres? Elas estão lá no quarto da Avó falando das tias e dos filhos desde o início do século enquanto desfilam as datas de aniversários de filhos e netas. Os homens estão na sala entorpecidos com bebidas e empolgados com o último jogo do campeonato.
Pois Luís Lélis de Sales, ou Lelinho para os íntimos, prefere ficar no quarto da Avó enquanto aprende mais sobre as aflições das matriarcas e as migrações dos patriarcas. Pai de duas filhas, ele, desde cedo, aprendeu a entender as falas femininas e as memórias que teciam entre elas.
Ângela, sua esposa, às vezes achava diferente, até estranho, mas tinha se afeiçoado à família dele e nunca perdiam um evento familiar, nem batismos nem casórios nem velórios. Sempre todos encontravam o casal, com as duas filhas, nos encontros de gerações nas chegadas e partidas.
Sempre muito calmo, funcionário público tranquilo e ordeiro, Lelinho não criava caso, muito menos discutia futebol ou política, preferia ouvir do que falar, e não opinava em qualquer polêmica na moda daqueles dias. Por isso todo mundo estranhou a briga no boteco.
II
Primeiramente, afinal de contas, o que Lelinho fazia num boteco? Ele que nunca bebia, preferia degustar uma homilia e até ajudava na sacristia! Ou, se bebia, só fazia por companhia nas festas da família.
Com a família ele se abria, era solícito e até declamava poesia, mas com estranhos era até tímido. Só cumprimentava os conhecidos, porque faria parte de roda de briguentos numa porta de bar?
Não era ainda meio-dia e Lelinho, voltando do posto de saúde, onde buscou uns remédios para Ângela, que sofria com diabetes, parou num boteco, perto da parada de ônibus, e pediu um refri sabor uva.
Ninguém sabe explicar como a tal briga começou e nem as circunstâncias. Se ele tivesse passado meia hora antes ou meia hora depois não teria dado de cara com o indivíduo que desencadeou a crise toda.
A verdade é que Lelinho que ouvia dez vezes antes de falar e decorava poesia em vez da escalação da seleção brasileira, se envolveu numa discussão de boteco que vazou pra rua e quase foi para briga de braço e rinha de galos.
Homem de estatura mediana, saudável e vitaminado, Lelinho não entrava em briga por covardia. Nada disso. É que faltava interesse mesmo em discussão. Ele preferia anotar e ponderar... dias depois dava a opinião, se necessário fosse.
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III
Mas a briga aconteceu mesmo. Até vizinhos viram e ouviram. Lelinho entrou num boteco pra comprar um refri sabor uva e na entrada um cidadão esperava um ônibus com os filhos, um casal, quase mocinho e quase mocinha. Uniformes de colégio e com celulares ligados com videogames, com certeza. E ao lado, o pai, alto, magro, de óculos escuros, roupa preta e bota, e também só atento ao celular, enquanto o lotação não dava sinais de aparecer.
Lelinho então puxou conversa com as crianças, que, do ponto de ônibus, tinham se assentado numa das mesas do boteco ali na rua. E do movimento o pai, alheio, nem tinha se apercebido.
As crianças não fizeram mais do que ignorar o Lelinho que foi falar com o pai, ali ao lado, que não era bom criançada com a cara no celular. O pai o ignorou simplesmente. O que incomodou o nosso Lelinho imensamente.
O pai se limitou a chamar as crianças para perto, sob a sombra da parada de ônibus. Ele não tinha sequer autorizado que as crianças ficassem na porta do boteco.
Lelinho então puxou mais conversa com o homem que não estava para prosa não. Irritado com a demora do coletivo e com a agitação e a desobediência das crianças, o homem se afastou do Lelinho, que se sentiu mesmo menosprezado.
Quem virava as costas para o Lelinho, pessoa admirada e respeitada na família? Na rua ele se sentia um qualquer.... Como se ele dissesse alguma leviandade ou besteira notória.
Mas parece que o homem colocou mulher no meio. Falou alguma coisa sobre tudo ser culpa da mãe das crianças e algo mais pesado. Lelinho ficou indignado com o homem difamando a mãe com as crianças. E tentou trazer o cidadão ao império da razão. Em vão. O homem apelou e colocou a mãe de Lelinho no meio da rua!
Aí Lelinho avançou sobre o homem. Sorte que o homem se jogou de lado e escapou ao golpe. Agarrado ao celular e, já esquecido do ônibus que não aparecia, o cidadão começou a praguejar e difamar as mulheres da família até a terceira e quarta gerações.
Lelinho falou que merecia respeito e que chamaria assim as autoridades. O cidadão agitava o celular como se fosse um sabre e gritava que sim! Faço questão que chame a polícia! E até falava uns troços em estrangeiro, inglês ou espanhol. Seria mais palavrão?
Quem estava por perto achava que era discussão de política. Uns defendiam o candidato da situação e outros apoiavam o nome da oposição. Dois vizinhos passaram de carro e resolveram parar. Providência divina: resgataram Lelinho daquele tumulto na porta do boteco.
O cidadão foi embora, arrastando as crianças, xingando menino e menina, e os ancestrais e os descendentes do pobre Lelinho, que em vão repetia que era funcionário público e merecia respeito.
Claro que o episódio logo virou folclore na família e as matriarcas ficaram lisonjeadas com o calmo Lelinho defendendo a honra das mulheres. Todo mundo falava que o homem era até calmo, só não vá colocar a mãe no meio!
Ago 25
LdeM
Leonardo de Magalhaens
poeta, contista, crítico literário
Bacharel em Letras FALE / UFMG
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