quarta-feira, 24 de junho de 2015

A poética nômade de Ruy Cinatti







A poética nômade de Ruy Cinatti


Leonardo Magalhães
Fale / UFMG



Biografia básica


       Ruy Cinatti (1915-1986), poeta, além de botânico, engenheiro-agrônomo e etnólogo, tendo estudado em Lisboa (Portugal) e Oxford (Reino Unido), viveu em viagens por colônias portuguesas (Estado do Ultramar) na África e na Ásia, durante as décadas de 1930 a 1960. Cinatti defende os interesses portugueses, mas ciente das condições precárias dos colonos e nativos, a sofrerem com a política imperialista. O poeta, um 'católico militante', integrava-se ao 'catolicismo social' que, em discurso de conservadorismo, baseava ideologicamente o nacionalismo português, o salazarismo, desde a década de 1930.

       Mesmo integrado aos movimentos literários e religiosos na metrópole, com as revistas Cadernos de Poesia e Aventura, Cinatti demonstra desconforto com a sociedade portuguesa, cindida por diferenças ideológicas, reacendidas pelo conflito internacional (a Segunda Guerra Mundial, 1939-1945), então aceita, em 1946, com a nomeação de um novo governador, integrar uma expedição à ilha de Timor, no sudeste asiático, em domínio indonésio, ocupada pelas tropas japonesas recentemente expulsas. Assim, o poeta assume o seu lado “português da aventura” devido ao seu próprio caráter e graças às tantas leituras, com narrativas de viagens e explorações. Afinal, ao assumir sua 'condição itinerante' de “navegar é preciso”.

        Em 1956, Cinatti divulga o manifesto Em defesa dos timorenses contra o preconceito metropolitano que rotula os timorenses de ociosos e preguiçosos. Antes, o autor denuncia a incompetência e os abusos dos funcionários e administradores do governo português. Em 1958, Cinatti lança seu terceiro livro de poesia, chamado O Livro do Nómada Meu Amigo, a poetizar e descrever as experiências vividas no mundo timorense, após sua segunda 'temporada' na colônia.

       Em 1964, Cinatti retorna à Europa, onde visita museus e universidades, em cidades da Inglaterra, França, Holanda e Suíça. No final da década de 60 o poeta passa por uma experiência de 'conversão espiritual', que aprofunda sua adesão ao catolicismo. Dizia ele : “Sou um católico poeta. Não sou um poeta católico.” Em início de 1974, o quadro político em Portugal sofre profundas mudanças com a Revolução dos Cravos. Em fins de 1975, desprotegida, praticamente sem governo, a colônia timorense é invadida por forças indonésias. Evento traumático para o povo e para o poeta que se identifica com o povo.


O Nómada / Nômade

       Nomadismo, a impermanência, o não comodismo, o não sedentarismo, como modo de vida e relação com o cosmo, o mundo, enquanto desejo de descoberta, de contato com a novidade, com o inesperado. Assim o poeta se encontra na errância, “labor poético sob o signo da errância” ou “poesia como forma de nomadismo” (Moreira) como bem demonstra a figura do homo viator, o homem viajante, o andarilho, the wanderer, qual um Judeu Errante, mas não um amaldiçoado, em novas trilhas, sempre em busca de novos espaços, novas experiências. A figura do andarilho, que tanto seduziu o pensador, o último dos filósofos metafísicos, Friedrich Nietzsche (1844-1900), criador do profeta errante Zaratustra, eremita que deixa a solidão para ser peregrino.

O nómada, o que não tem morada fixa, aos olhos do sedentário é um marginal. É alguém que não se enquadra no estreito limite que um mundo crescentemente sedentário, impessoal e individualista tem vindo a impor. Ele não se ajusta a códigos sociais ou políticos. O seu grupo, se quisermos colocar a questão nestes termos e desviar-nos do indivíduo, está sempre à margem. (Moreira, 2013, p. 62)

       Outra figura da errância, o flâneur seria o homo viator das metrópoles, das grandes cidades cheias de vitrines e luzes néon. Um ser dotado de olhar e percepção aguçada, capaz de andar e observar, palmilhar e sentir, capaz de descrever e estar além do prosaico, transmitir o sentimento, em sua poesia em trânsito, num deslocamento entre tantas vivências, a buscar aventuras a cada quarteirão. Ao avançar mais que o flâneur, temos o nômade que não vive num lugar apenas, mas habita diversos. Tem um olhar atento e participante sobre povos diversos, com os quais divide espaço e pão, com os quais coabita e colabora.

       Vida em viagem, epifanias na estrada. Mas não basta ser nômade, é preciso saber olhar e transmitir. Ser um poeta capaz de descritivismo, mais dado aos detalhes, em re-criações ricas de sinestesias, para levar junto o leitor, para aderi-lo ao mundo em trânsito, em cada nova viagem. É assim que exige o olhar que testemunha a Alteridade, a condição do Outro, que faz mais evidente a nossa própria condição. Sabemos mais sobre nós mesmos quando em contato com outros povos.

O que está em causa é apenas a mais completa novidade e a contínua surpresa do mundo, facultadas pela visão em permanente estado de deslumbramento. (Frias: 2011, p. 190)

       E mais do que descrever, como um mero turista, o poeta vem participar, e ousa denunciar. Pois ele sente compaixão, ele que viveu junto, comeu do pão generosamente dado, foi bem recebido pela hospitalidade. Ele, um forasteiro, um cientista, um nômade que nada sabia, mas produzia conhecimento junto, em participação e compaixão.

       Sem o contato, sem o sofrer-com, o poeta não passaria de um cientista, a coletar espécimes, ou um turista, a colecionar paisagens. É preciso estar-com para testemunhar a condição do Outro e denunciar os exploradores que sempre lucram com a miséria alheia. É preciso ir-além, e estar atento, não trilhando caminhos já batidos, mas abrindo novas rotas. O poeta usa sua palavra na condição de desbravador e defensor, não um herói, ou um mártir, mas um amigo-nômade.

O aventureiro não é senão o nómada bem aventurado, porque é o nómada que se desvia das rotas habituais, graças à sua especial paixão pelos desvios do caminho traçado. (Frias: 2011, p. 192)
 

      Para Cinatti importa antes a figura do inquieto, ou dos “pioneiros do descobrimento”, que almejam algo além, que esperam transcender, e se destacam por solidão, mas também, solidariedade. O poeta busca novas amizades, dialoga com o amigo em viagens, o amigo nómada, que é esperado enquanto interlocutor. Mas o viajante é o próprio poeta, em sua inquietação, o que nos leva a pensar que o amigo nómada é uma espécie de alter ego. Em vários poemas, e em outros livros, a figura do alter ego é evidente. 
 
        Não apenas o nómada, mas também os amigos, que recebem dedicatórias, com a evocação dos mesmos nos versos. Assim no belo e imagético poema Visão, onde evoca-se Alain, que seria Alain Gerbault, navegador francês, falecido em Timor, “Alain, Entre vagas, velas e gaivotas.”

Levanto as minhas mãos repletas de água.
Amanheceu !

Sonho no mar sereias : algas
Corais limosos … Eu acordava
entre aguaceiros límpidos. Pinhais,
Pássaros, flores, penumbra e arcada de
árvores
- Momento
Que ao de leve anotava.
Serenamente explorava
Apelos e miragens.

Era o mar cheio de estrelas,
Barcos partindo para não sei onde.
Ondulações magnéticas, antenas.
Ansiedade...

Eram ilhas
Hérculeas: coroas
Vegetais sobrenadando
Altos castelos submersos e, apenas,
(“Sepultem-me no mar, longe de tudo”),
Alain,
Entre vagas, velas e gaivotas.

Levanto as minhas mãos repletas de água.
Amanheceu !


       O tom da obra O Livro do Nómada é de desejo e missão, de busca de novidades, de novos mares e terras, numa elevação de epopeia, mas vivida por homem simples, um cientista, um administrador, meio aos povos nativos, que passam a ser vistos como a figura do 'bom selvagem', homens de alma pura, que merecem a admiração do poeta. Povos que são explorados, despojados de toda esperança. Mas povos que são capazes de muito ensinar, “O timorense meu amigo ensinou-me muitas coisas”, reconhece o poeta Cinatti.

       A epopeia do homem comum, para fora e para dentro de si mesmo, num inquietar constante, foi bem apontada por Moreira, em sua dissertação, 
 
Compreender o tal “mistério de existir” pessoano, como já atrás referimos, é algo que confere força à poesia de Cinatti, pelo que é óbvia a perspectiva do autor relativamente à possibilidade de o desvendar. A autognose, a descoberta de si nos outros e em Deus funcionam como motores. Visto que o melhor mundo está por descobrir, a estratégia adoptada vai aproximar-se muito da de Cesário ou de Caeiro. Não se trata somente de uma vigília, mas sim de uma deambulação que não se enceta apenas no plano físico; vai para além dele, como aliás já se adivinhava nas citações de Fournier e na evocação da tal outra paisagem que não se avista, mas se (pres)sente. (2013, p. 49)

       Em sua missão, de deslocamento e de amadurecimento, pois “O melhor mundo Está por descobrir” (no poema Vigília), o poeta evidencia uma dinâmica dos olhares, sempre abertos para a novidade do mundo, tal um Alberto Caeiro, sempre ciente de si mesmo, mesmo autodepreciativo, a lembrar-se modesto, humilde, tal um Álvaro de Campos, pessoas do universo heteronômico de Pessoa. Em trânsito entre mar e ilha, entre meditação e solidão, entre imensidão e recolhimento, o poeta oferta imagens que desvelam as descobertas e as desilusões, numa jornada que congrega lugares e pessoas, não mapas ou estatísticas, não apenas pesquisas, mas participação. É o ser participante que diferencia o ser poeta. Não ser apenas um solitário, mas também um solidário.

O sujeito procura sempre compensar esse isolamento, tornando fisicamente presentes aqueles que estão longe e adoptando uma postura de fraternidade universal que está patente logo no primeiro poema de O livro do nómada meu amigo, “Proclamação” (ibidem: 101). (Moreira: 2013, p. 64)
 
      Assim o poeta não se afasta, mas se aproxima, para melhor participar e poder testemunhar. É um nômade que vai de ilha em ilha, cidade em cidade, e coleciona olhares e amizades, mas sem perder sua capacidade de ensimesmar e criticar. É ter um olhar novo, constantemente, disposto para descobertas, pois, ele sabe, “a vida é todo mistério”.

Nunca mais soube O que era ter sossego.
A maresia das ondas, a ventania
dos montes mais altos, decidiram
a minha condição. Mas não me queixo.



Tantas referências na poética nômade

       Para a análise crítica do poema é necessário um olhar sobre dois aspectos, ou condições, a saber, o que está dentro e que está fora, a forma do texto, e o que está além do texto. Podemos ler o léxico, os campos semânticos, as vogais abertas e fechadas, o ritmo, as rimas, as métricas; e precisamos ler as entrelinhas, com seus intertextos, redes de referências, o que não está escrito, mas o/a poeta espera que saibamos. Acontece que o Poema exige do Leitor completar o que é dito textualmente. Do texto é preciso ir além: ao Contexto. Quem o produziu? Onde o produziu?

       Temos poetas que exercitam estilos no plano formal, com riqueza de recursos de sonoridade e metrificação, enquanto outros poetas preferem desafiar os leitores a encontrarem os intertextos, as referências, com tal quantidade de informações que exige uma leitura interativa, e criativa, acessando filosofia, mitologia, antropologia, botânica, heráldica. Há verdadeiros autores enciclopédicos e/ou herméticos, que dizem pouco, quando esperam que o contexto seja recuperado além do texto. Assim impérios, conspirações, palavras cabalísticas, cartas de tarô, períodos históricos, sistemas filosóficos estão no horizonte do autor erudito, seja por suas leituras e/ou por suas vivências. Em tal erudição, o/a poeta cria textos que necessitam de longas notas de rodapé. E, caso ausentes, de uma dedicada pesquisa do/a leitor/a.

       Ou situar o poema na Obra do Autor. Ou melhor, o texto no contexto do autor – o que aquela palavra ou imagem representa no conjunto dos textos, ou de um texto em relação ao(s) outro(s). A imagem foi referenciada / representada com que Sentido? O que está implícito? Qual a função no texto? Ou será ligar o texto ao(s) outro(s) numa teia de referências?

       Sendo assim, não falamos mais de forma, mas de Estilo. E, para além do texto, temos a Obra. Para além de Autor e Obra, temos a biografia, e a 'máscara autoral' (o poeta-fingidor, o poeta-profeta, o poeta-testemunha, o poeta-flâneur, o poeta-revolucionário, etc). E teremos uma gama de recursos do autor / máscara autoral que podem ser encarados como positivos ou negativos: o autor é multifacetado por estilo ou por falta de estilo? É inovador a cada obra ou é instável, sem rumos? Sua variação é fingimento ou falta de caráter?

       A presença de nomes de cidades, rios e montanhas, ou alusão aos povos ilhéus, na poesia de Ruy Cinatti mostra o quanto o olhar de cientista, de antropólogo, está presente no artista, no autor, que deseja descrever, representar, explicitar, até didático. São poemas que muitas vezes exigem notas e referências, das quais o próprio poeta cuida, ou são acrescentadas por editores. Pois ao redor do poema está muito mais do que o poema pode dizer.

       Precisamos saber quem escreveu e onde escreveu. Quem é o Ruy Cinatti que perambula curioso e científico por uma ilha chamada Timor? Há uma necessidade de um olhar sobre os traços biográficos do Autor, o co-irmão do nômade. Distante da pátria lusitana, nas praias da colônia, em Timor que é geografia e alegoria, Cinatti rememora a aventura dos navegantes portugueses, como num diálogo com o poema épico de Luís de Camões,

Confuso estou com o meu país,
que não é feliz
e só ao cabo de oitocentos anos
descobriu – até quando? -
que nos enganamos
e que a verdade está só com os de Restelo
-velhos e poetas impotentes jovens
que só distantes
berram pela mãe
que lhes deu o seio,
pelo pai,
que lhes deu os dentes.
Que sirva isto de intróito a menos meio
deste relato.
Timor foi lição de mira e de contato,
esquadria e facto,
peregrinação-alegoria
[…]

(Palinódia com Fernão Mendes Pinto de Permeio,
in: Paisagens Timorenses com Vultos / 1974)


       As nomeações e situações, as localidades e fatos históricos criam uma moldura para o exercício poético, que parte de fora para dentro, num diálogo, que é mais do que descrição, é participação. Mesmo seu didatismo, não raro enciclopedismo, se justifica pela suposição de uma ignorância do leitor – afinal, quem conheceria Timor? O viajante em necessidade de situar o leitor, carregar junto no percurso, pontua suas lembranças de vivências, em fotogramas de cada paisagem, cada cidade, cada vulto humano, cada novo amigo.

        A paisagem (que o afundou) diz muito do estado íntimo do poeta, perturbado, em sua compaixão, por um mundo abandonado no sofrimento. É por compaixão, ou dirá 'amor', que ele escreve, adensando sua poética a cada viagem, um nómada consigo mesmo.



Jun/15



Mais de Ruy Cinatti em ::











REFERÊNCIAS


CINATTI, Ruy. Paisagens Timorenses com Vultos. Lisboa: Relogio D'Água, 1996.

COSTA, Letícia Villela Lima da. Metáforas do Mosaico: Timor Leste em Ruy Cinatti e Luis Cardoso. (Tese) Universidade de São Paulo, 2012.

FRIAS, Joana Matos. Olhos Novos para contemplar Mundos Novos: Corografias de Ruy Cinatti. Universidade do Porto. Cadernos de Literatura Comparada. Junho / Dezembro, 2011.

MOREIRA, João Luís Salgueiro. Ruy Cinatti – O Livro do Nómada meu Amigo ou A Poesia como Nomadismo. (Dissertação) Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2013 .

STILWELL, Peter. A Condição do Homem em Ruy Cinatti. Revista Didaskalia, vol. XXII, 1994.
___________ . O Timor de Ruy Cinatti. Lisboa, revista Camões, n. 14, jul/set.2001.


Terças Poéticas - Bloomsday surreal - homenagem a Piva






                         Terças Poéticas
com Leonardo de Magalhaens e Pollyanna Nunes
em homenagem a Roberto Piva,
clássico maldito da poesia brasileira contemporânea.


TERÇAS POÉTICAS apresenta no Teatro João Ceschiatti, Palácio das Artes, dia 16 de junho de 2015, às 19h, entrada gratuita,
o poeta, ensaísta e tradutor Leonardo de Magalhaens
e a participação especial de Pollyanna Nunes,
estudante de Letras da UFMG, em homenagem a Roberto Piva,
clássico maldito da poesia brasileira, expoente da chamada “geração marginal”.


O Encontro Internacional de Leitura, Vivência e Memória de Poesia Terças Poéticas, criado por Wilmar Silva de Andrade, se tornou uma referência em função de uma abertura de diálogo entre a literatura e o universo das artes, apresentando ao vivo, poetas e escritores, artistas de toda a natureza, brasileiros e estrangeiros, clássicos e eruditos, marginais e populares, em busca de um debate entre gerações e linguagens, enfim, as tendências artísticas da atualidade e suas condições, políticas ou não.


Terças Poéticas, desde a estreia em 05 de julho de 2005, abre espaço a homenagens a criadores universais como redescoberta da humanidade e de sua memória como fonte de reflexão. Terças Poéticas tem produção e realização da Fundação Clóvis Salgado e Anome Livros e apoio do BDMG Cultural.


Leonardo de Magalhaens fará leituras em performance de seus poemas autorais mesclados a um roteiro em diálogo com a poética de “Paranoia”, livro que elegeu Roberto Piva como um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos. Pollyanna Nunes fará uma participação especial com poemas próprios e de Roberto Piva, além de um debate de ideias sobre a importância da poesia de Roberto Piva na atualidade.




Leonardo de Magalhaens é poeta e pensador, servidor público, bacharelando em Literatura Brasileira na FALE/UFMG. Autor de poemas, contos e romances inéditos, além de críticas sobre autores vivos, demasiadamente vivos.






ROBERTO PIVA

Paulistano nascido em 1937, Roberto Piva teve seus primeiros poemas publicados em 1961 na “Antologia dos Novíssimos”, organizada por Massao Ono. Dois anos mais tarde, saía seu primeiro livro, “Paranoia”. Em tudo oposto ao que vigorava na poesia daquele período – em especial ao movimento concreto –, “Paranoia” revelava influências do surrealismo e da geração beat, o que causou estranhamento junto a críticos mais conservadores. Os anos, porém, se encarregaram de fazer da obra um dos marcos da poesia brasileira do século 20. Publicou ainda “Piazzas” (1964), “Abra os Olhos e Diga Ah!” (1975), “Coxas” (1979), “20 Poemas com Brócoli” (1981), “Quizumba” (1983), “Antologia Poética” (1995) e “Ciclones” (1997).
Sua obra completa foi reeditada em três volumes e publicada pela editora Globo entre 2005 e 2008. Faleceu no dia 3 de julho, aos 72 anos, em São Paulo, onde sempre morou.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

O Tempo / Time - poema by LdeM




O Tempo


A R. St.


O tempo passa, o tempo voa
o tempo flui em marés
em correnteza de riacho
o tempo soa e ressoa
em tique-taques
o tempo move e remove
o tempo acende e apaga
o tempo destrói casa e mansão
o tempo desgasta seixo e montanha
e empurra as geleiras
o tempo escava e modela
abre fissuras, aparta continentes
o tempo mata e recria
o tempo usa trajes de fênix
o tempo tem três faces:
enterra o ontem, oferece o hoje,
promete o amanhã
o tempo tem quatro faces:
sol vigoroso, queda das folhas
noite fria, novo desabrochar
o tempo usa vestes de vento,
véus de neblina
o tempo é parteira, ama-de-leite
e carpideira
o tempo soma idades e diminui
o vigor
o tempo transmuta feridas
em cicatrizes
mágoas em lembranças
heróis em estátuas
honras em esquecimento
o tempo evolui espécies,
extingue espécimes, fortalece cepas,
elimina subespécies
o tempo desperta a semente,
engorda o fruto,
anuncia a colheita
o tempo valida apólices e seguros
o tempo é farto em sinistros
o tempo garante a safra
debita o crédito, valoriza
as ações, volatiliza
as fortunas
o tempo acumula e dispersa
o tempo sabe tingir e descorar
no tempo movem-se as sinfonias
e os tiros de canhão
o tempo oficializa casórios
e divórcios
o tempo costura e desata
o tempo afasta do berço
e aproxima da cova
o tempo acha que é dono
que é dono da gente …




05/06jun15




Leonardo de Magalhaens










Time


Time goes by, Time flies
Time flows in tides
in stream of river
Time sounds and resounds
at the tick-tocks
Time moves and removes
Time lights and blows out
Time destroys house and mansion
Time corrodes stone and mountains
and pushes the glaciers
Time exacates and models
it opens cracks, moves continents away
Time kills and breeds again
Time wears dresses of phoenix
Time has three faces:
it buries yesterday, offers today,
promises future
Time has four faces:
strong sun, leaves fall,
cold night, new bloom
Time wears dresses of wind,
veils of mist
Time is midwife, wet nurse
and weeping woman
Time adds ages and reduces
strength
Time turns wounds into scars
sorrows into memories
heroes into statues
honors into oblivion
Time evolves species,
it wipes specimens out,
strengthens strains,
eliminates subespecies
Time awakes the seed,
it fattens the fruit,
announces the harvest
Time validates policies and insurances
Time is full with misfortunes
Time assures the harvest
it debits the credit, value
the shares, steams
the fortunes
Time amasses and scatters
Time knows to dye and fade
in Time moves the symphonies
and the cannons fire
Time makes official marriages
and divorces
Time sewes and unties
Time moves from the cradle away
and brings the grave closer
Time thinks it is owner
it is owner of us...


08jun15


Leonardo de Magalhaens


terça-feira, 2 de junho de 2015

sobre o conto Relatório da Coisa - de Clarice Lispector






Sobre o conto 'Relatório da Coisa'

de Clarice Lispector [1920 - 1977]


in: Onde estivestes de noite? [1974]


     Neste conto, a autora, mestra do aprofundamento psicológico, Clarice Lispector adentra o enigma da percepção do tempo, e nossa reação diante dele, e dentro dele. Estamos inseridos no Tempo e julgamos que podemos entendê-lo! Há toda uma ciência do Tempo, um cálculo atomístico do Tempo, um tempo atomizado até os milissegundos, mas isto é doença.

      Uma Coisa difícil de entender: o Tempo. O tempo não é divisível, e sim imutável, mas nós precisamos dividir o tempo, daí inventamos o relógio : coisa monstruosa.
 
     Para abordar o delírio Tempo e Tempo medido (o relógio) é preciso uma outra forma de fala – entre a ficção e a digressão. Um dizer sem literatura : relatório enquanto anti-literatura. Então, pensemos, o que seria literatura: mero beletrismo? Ficção? Floreamento? Simulacro? Mas o dispositivo mecânico, o despertador Sveglia, com sua matemática mecanicista, faz a autora perder a literatura: só saberá escrever relatório. Assim o mecanicismo invade a Arte?

     Enquanto medidor, Sveglia é de Deus --- cérebros divinos para concebê-lo --- enquanto Coisa que traz o despertar. Mas só de despertar viverá o Humano? “é preciso estar acordado para ver, mas é importante dormir para sonhar com a falta de tempo”. Assim, o sonhar, o não ser desperto, é tão importante quanto o ser consciente. É um irracional que complementa o racional, a la Sveglia. A Razão não é suficiente.

      A Coisa me vê ? vê também como um outro Objeto? Trata-se de um mundo coisificado, onde tudo é Objeto que tem um Objetivo. Ou então o mundo é sonho? Assim como viam um Calderón de la Barca ou um Salvador Dalí? “quero ver a realidade. Mas a realidade parece um sonho.” Esta constatação traz uma certeza, um sentimento de melancolia – felicidade – plenitude. Quase se deixa em pranto. 
 
    Mas Sveglia não chora: é sem circunstâncias. É uma vigília, é um É, sem adjetivações. Está ali como se vigiasse tudo. Olho aberto sobre tudo. Faz tudo acontecer – a sucessão dos momentos, que o Sveglia pode medir. Assim ela roga “me aconteça, Sveglia”, ao constatar o desejo: “mola da vida animal”. Mas a Coisa é indiferente ao pathos (afeto) da narradora. A Coisa não quer mal, mas não quer bem. É assim mesmo: sem afeto : ser uma Coisa. Está-aí, sem devir: sem fenecer. Pouca lhe importas que “viver apodrecendo importa muito.”

      Mas Sveglia tem fraquezas : Coisa é vulnerável. É um mero mecanismo que que pode enferrujar se submetido à umidade, por exemplo. Não tem nada além da pretensão de medir o Tempo. “o tempo que para” ? Um Tempo que exige consciência: precisamos saber a cada momento que tudo passa – e somos carregados pela correnteza do Devir: o Tempo: rio que escorre: areias que deslizam.

      Estar consciente é despertar. E despertar é acordar-se de dentro para fora. Ao soar no momento do despertar o cérebro eletrônico se comunica com nosso cérebro numa espécie de sintonia que ofusca a natureza da contradição: o aparelho mede o Tempo, mas somente nós, seres conscientes, sabemos que o Tempo passa.

     E ser consciente é estar contra o ritmo do Sveglia : o sentimento, a mitologia, a contação de estórias, a flâneurie, ou seja, flanar por ir. Banhar-se no rio do Tempo que passa, onde não mergulhamos uma segunda vez (vide o devir – panta rei, tudo flui - de Heráclito). O humano sabe do tempo, e do medidor do tempo, mas a reciproca não é verdadeira. “Eu creio no Sveglia, ele não crê em mim, acha que minto muito, e minto mesmo”.

     Sem consciência, sem espírito lúdico, Sveglia permite só relatório, não conto, romance, “permite apenas transmissão”. O mecanicismo é seco, é metódico, é formalista, não admite ficcionalismos. Sveglia não tem nome íntimo, só anonimato, também Deus é anônimo, não tem nome que possa ser pronunciado. Sveglia é burro, age clandestinamente. E Deus? Ela ousa: “coisa grave, pode parecer heresia: Deus é burro. Ele não entende, não pensa, Ele É apenas. Burrice que se executa a Si Mesmo. Comete muitos erros e Ele sabe disso. Olhemos nós mesmos, somos um erro grave.” Muito em Si-Mesmo, contudo “um erro ele não comete: Ele não morre”. Sveglia não morre. O mecanismo não morre.

      No jogo de alegorias, a narradora faz um rol de referências e analogias, quando símbolos se relacionam com nosso cotidiano, permeado pelo Tempo e das medidas do Tempo. Assim o galo é Sveglia; o ovo completo, no todo, em sua inteireza. O de dentro é molhado, igual sentimento. Sveglia : jogo de futebol, imprevisível, mas Pelé não é, pois rompe o anonimato. Briga é Sveglia. Ter problemas não é Sveglia. E assim vai.

     Ela vive de analogias, de referências, pois não vi o Ser. “Escreverei sobre o eletrônico sem jamais vê-lo”, a indagar se ver é permitido, ou se sonho é permitido. “sonhar não é Sveglia, o número é permitido.” Ou saber que “Raríssimos poemas são permitidos”. Romance não é permitido, de modo algum. Sveglia não permite profundidades, apenas mesurações.


      Nem alegre nem triste: é Sveglia: ausência de sentimento. Água é Sveglia, escrever é, ter estilo não é. Ter seios é, o órgão masculino é demais. Uma rede de contradições e opostos, passível de rupturas. Do tipo “Bondade não é o oposto da Maldade.” Então a divisão do mundo em categoria sé ser Sveglia, é criar parâmetros e categorias onde encaixar a realidade. “Sol é , a lua não. Uísque é, e coca-cola é, pepsi.”, entre o simbolismo e a ironia.

     Ela se espanta, ainda consciente, diante do logicismo, que exige secura e formalidade. “Estarei escrevendo molhado?”, isto é, com sentimento? Pois ser seco é ser lógico, ser metódico, escrever academicamente. Assim as reticências [...] não são Sveglia, pois deixam em aberto, deixam no ar, não totalizam a questão, como a Lógica faz, ou espera, ou planeja. Assim “se alguém entender este irrevelável relatório é Sveglia”, pois a autora não espera compreensão. Nem tudo pode ser entendido - ou medido - como pretende o mecanismo Sveglia, em sua megalomania de medir o Tempo!

       Aprofundada em autoconsciência a narradora desabafa: “parece que eu não sou eu, de tanto que eu sou”, e sente abalar-se, em sua escrita, com a presença pensada do mecanismo medidor do rio do tempo que flui. É denunciante: Sveglia mata. Sim, ela sabe disso. Sveglia é logicismo, e não-Sveglia o espontâneo, o imprevisível. O logicismo contamina, a preocupação com o Tempo medido e calculado estressa. O mecanismo com seus dígitos passa a conquistar, dominar, amordaçar a pessoa estressada, apressada, formalizada. No final das contas, não é pessoa que é dona do Sveglia, mas o Sveglia - o regulador do Tempo - é dono da dona !

       Assim, a narradora finaliza, já confessando-se exausta, confundida com a autora, “parte de mim você [Sveglia] já matou” - o que nos abala e nos revela, ao mesmo, tempo uma verdade presente em entrelinhas, a de que o logicismo matou muita poética no mundo.


18mai15


Por Leonardo de Magalhaens


Bacharelando em Literatura
Fale / UFMG



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